11.24.2006

Os gigantes da California (EUA)

Dia 114
Km 8144



"Bem vindo a Califórnia", dizia um sinal na estrada.
Califórnia, terra dos capuchinos orgânicos, light, descafeinados,
desgordurados, feitos com leite de soja e servidos quentes ou frios, em qualquer esquina de uma aldeia ou cidade. Na Califórnia, toda a gente parece viver para uma causa saudável, seja ela, comida orgânica, puro vegetarianismo, puritismo, ou seguir alguma ceita budista apenas encontrada nalgum recôndito dos Himalaias.
Eu estava a espera de encontrar apenas muito sol, um clima ameno, palmeiras, e louras a andar de patins pelos passeios.
Mas nos primeiros dias de viagem pelo maior e mais dinâmico dos estados americanos, encontrei apenas muita chuva, mas também uma costa lindissima.
O meu progresso para sul pela estrada pan americana (EN 101), pela costa de oregon, foi bastante lento, devido as tempestades marítimas que atacam a costa noroeste americana nesta altura do ano, obrigando-me a tomar refugio em Moteis, que fizeram um pouco de danos no orçamento da viagem.

A diferença entre um Motel e um Hotel, e` que no Motel podes conduzir o automovel ate a porta do quarto, no Hotel não!
Neste pais, tudo parece girar em torno do automovel. E´ o que eu chamo uma sociedade de conveniência. Existem "drive throu" para todos os gostos: restaurantes de "fast food drive throu",farmácias "drive throu", cafetarias, cinemas em parques de estancionamento, etc, etc.
Uma vez que estou no pais da "fast food", no outro dia não resisti a experimentar uma Mac Donalds drive throu....de bicicleta. Entrei na bicha de automoveis, e quando chegou a minha vez, falei para um microfone e pedi um big Mac. Uma senhora dentro do estabelecimento, com uns escutadores e microfone sem fios, ia juntando os ingredientes ao mesmo tempo que falava comigo. Não consegui esconder um sorriso, ao ver a sua cara incrédula, quando me passou a refeição pela pequena janela do edifício. A diferença, e que, de automovel vais a comer para o trabalho, eu, tive que procurar um banco de um jardim. A próxima vez que vir um cinema para automoveis, pensei, vou ver um filme. Não pelo seu conteúdo, mas para me divertir com a cara das pessoas ao verem um ciclista, num cinema para....automoveis.

207 milhões de viaturas circulam pelas estradas americanas (37% do parque automovel mundial!) Nem consigo imaginar o que seria deste pais, se um dia a torneira do combustível secar.
A estrada EN 101 desliza sobre as montanhas, bordeando a costa do pacifico.
Mesmo apesar dos dias escuros e chuvosos, depois de passar tantos dias no deserto, foi um prazer pedalar junto a costa verdejante.
As baixas pressões que entram no continente, vindas do pacifico, normalmente vêem com intervalos , que variam entre 0 e 3 dias. A única forma de fazer algum progresso para sul, era aproveitando esses intervalos. Como tinha passado a noite numa pousada da juventude, e não tinha que fazer as malas ou desarmar a tenda, comecei a pedalar com o nascer do sol. Chovia pouco, mas a humidade a quase 80%, colava o Gore-tex (equipamento impermeável) ao corpo.
Mas apesar do desconforto, estava bem disposto. Pedalava por uma costa rochosa e de falésias lindissima, e por vezes a estrada, quando não bordeava as falésias, entrava por florestas anciãs de "Seqorias Sempervirens"( do latin sempre vivas). A Califórnia reclama para si, não só as arvores mais grossas do mundo, mas também as mais altas. As chamadas "redwoods", mais altas do que a estátua da liberdade, e com uma longevidade que pode ir ate aos 2000 anos, encontram-se na zona costeira do norte da Califórnia, e são rivalizadas apenas por uma outra espécie existente na china. Mais a sul, na encosta oeste da Sierra Nevada, e´ o único local do mundo onde ainda existem as Seqoias gigantes, dos seres vivos mais velhos do planeta, com idades superiores a 3000 anos e apesar de serem um pouco mais baixas do que as suas primas do norte tem um diâmetro que podem ir ate aos 12 metros.

Não pude deixar de imaginar,ao olhar a floresta de gigantes que me rodeava, a quantidade de historia que estes seres quase imortais,já assistiram. Digo quase imortais, porque não tem inimigos (para alem do homem), são resistentes ao fogo, insectos e outros animais. um único tronco de uma arvore da para construir varias casas...
A meio da manha, conheci o Diogo e o bernardo. Dois espanhóis madrilenhos que viajam em bicicleta pela América do norte a fazer um documentário sobre ciclismo de aventura para a televisão espanhola. Como íamos todos para sul, decidimos viajar juntos esse dia.
Ao final da tarde entramos num supermercado para comprar os ingredientes para o jantar, continuava a chover, e não tinha-mos a miníma ideia de onde iríamos passar essa noite. Um homem mete conversa comigo, e depois de uma breve conversa, estava a desenhar um mapa da aldeia num pedaço de papel, e a explicar como chegar a sua casa. tinha que ir a cidade de Eureka,disse, mas estávamos a vontade ate que ele chegasse.
Depois de um dia húmido e chuvoso, foi como uma davida do Deus dos ciclistas viajantes aquele convite. A casa vermelha pré-fabricada, estava situada numa pequena colina na parte Este da aldeia de Trinidad. O portão da garagem estava aberto e a lareira acesa.

Tal como O Eric disse, pusemo-nos a vontade. e começamos por um excelente duche, posemos uma maquina de roupa a lavar, com dose dupla de detergente, para assegurar a limpeza dos aromas ("Eau de estrada") comuns a um ciclista em viagem, um CD de musica da sua excelente colecção, e ficamos os três a olhar a fogueira e a discutir os pros e os contras de viajar em bicicleta.
Algum tempo depois alguém bate a porta. Era a vizinha, trazia na mão uma torta de abóbora para nos oferecer. preparou-nos um chá e depois de um pouco de conversa, saiu, para voltar pouco depois, com varias sandes vegetarianas de queijo com vegetais. No inicio da noite aparece o dono da casa. O eric vivia só, um tatoista de profissão, e a recuperar de um transplante de fígado, resultado de uma vida "agitada", e também ele um viajante, mas de Harley Davison.
-E sempre bom retribuir a hospitalidade, disse.
Trouxe consigo uma enorme piza. Pôs a piza no forno e saiu com a vizinha. Voltamos já, disse.
Nos nem queríamos acreditar. Apenas há 3 horas atraz, estávamos os 3 ensopados sem saber onde íamos passar a noite. O Eric e a vizinha(que não me recordo do nome), voltaram com um garrafão de 5 litros de cerveja e um saco cheio com mais sandes para levar-mos no dia seguinte. Pessoas como o Eric e tantas outras que tenho conhecido, estão a obrigar-me a mudar de opinião acerca deste pais. De donde vem toda esta bondade? será por andar a viajar em bicicleta?
Quando chegamos a cidade de Eureka, paramos numas bombas de gasolina a entrada da cidade, local favorito para encher as garrafas com agua gratuita.
O Diego mete conversa com um senhor, que se identifica como gerente de um supermercado de comida orgânica, e que nos convida a experimentar umas deliciosas bebidas orgânicas e energéticas. O que ele não nos disse , e´ que iria chamar a imprensa local. A repórter do jornal regional apanhou-nos a entrada da biblioteca municipal, onde paramos para ver o nosso correio electrónico. Depois de uma curta entrevista, fomos em busca desse tal supermercado e do batido gratuito.
Ao final do dia encontramos numa pequena floresta de sequoias gigantes, junto a um rio, na pequena aldeia de Scotia, o que nos parecia o local ideal para acampar. Estava uma noite sem luar, e por debaixo das arvores gigantes, a única luz existente, vinha das nossas lanternas agarradas a cabeça com uma tira elástica. devíamos parecer 3 marcianos desorientados, com o feixe de luz em constante movimento. Como na loja da aldeia não havia muita escolha de ingredientes, decidimos fazer o que os ciclistas chamam de "pasta SOS", esparguete com "something on sale". Estávamos a montar os fogões, quando aparecem 2 carros de bombeiros. Alguém tinha denunciado a presenta dos "marcianos" e fomos expulsos do acampamento. Eram cerca das 6 da tarde. Aquela hora já de noite escura, onde iríamos encontrar outro local para acampar?

-Onde anda o Eric?, disse o bernardo na brincadeira.
Um dos condutores, o James Silva, filho de um açoriano, mas que não falava português, foi a solução. Depois de falar com o meu conterrâneo, o James telefonou ao chefe dos bombeiros. Do outro lado da linha veio uma autorização para acampar no relvado em frente ao quartel. Pusemos toda a tralha nos carros, incluindo as bicicletas e as tendas semi-montadas, e esfila-mo-las pelas ruas da aldeia.
Enquanto montávamos de novo as tendas, desta vez em relva macia, o James Silva desapareceu, para regressar meia hora depois com uma supresa para nos. Acabamos a noite no refeitório do quartel a beber vinho tinto e a saborear umas chouriças caseiras. tempos depois apareceu a filha do James com uns bolos ainda quentes para nos oferecer.
Na manha seguinte o chefe dos bombeiros estava de serviço. Ofereceu-nos um café e mostrou-nos o jornal "The Eureka Reporter". Tinha-mos saído na primeira pagina do diário. Achei engraçado a repórter ter aproveitado 3 ciclistas europeus, para fazer propaganda politica; quando escreveu, que nos ainda não tinha-mos conhecido nenhuma pessoa que tenha votado por George Bush.
John Broadstock, alem de chefe dos bombeiros, era também responsavel pela segurança da planta de energia anexa ao quartel. Contou-me que a aldeia de Scotia era uma raridade na sociedade moderna americana. Era uma aldeia privada. Todas as casas, lojas, edifícios, incluindo os bombeiros, pertenciam a PALCO, a fabrica de produção de energia sustentavel. Ao que ele chamou : "A company town". A fabrica produz energia através de resíduos florestais, não só suficiente para abastecer toda a aldeia mas com sobra para vender.
Os donos da fabrica (e da aldeia), e uma "corporation" do Texas, e nesse dia havia uma inspecção de algum diligentes da companhia, que nos foram apresentados, enquanto tomávamos o pequeno almoço no refeitório. Estávamos quase de saída, quando um dos inspectores, entra no refeitório, e olhando para mim, disse, com uma cara de pouco amigo: "Li o artigo no jornal. Quero apenas dizer-vos, que eu fui um dos que votei por George Bush!! Quando saiu, desatamos a gargalhada.
E melhor sair-mos do raio de distribuição desde jornal, disse o Diego na brincadeira...
Pegamos nas bicicletas, e partimos pelas ruas da cidade "privada". Uma senhora sai a porta de casa, com uma copia do jornal numa mão, e a dizer-nos adeus com a outra.
-Hey, gritou, boa sorte. Façam boa viagem!

Como os "nostros hermanos" ibéricos, viajavam a um ritmo mais lento que o meu, em parte devido as paragens que faziam para filmar, decidi partir de novo sozinho, pois já tinha combinado encontrar-me com a minha amiga Danina, no sábado em São Francisco.
Os 3 dias que me levou a fazer os quase 400 km que faltavam, foram provavelmente, os 3 dias consecutivos mais exaustivos da viagem ate momento.um verdadeiro teste a minha ressistência física.
Se alguém vos disser que pedalar junto ao mar e mais fácil, não acreditem!!
Deixo-vos com as estatísticas desses 3 dias:
Dia 1: 118km percorridos e um desnivel acomulado de 1627 metros. Altitude máxima de 604 metros (o ponto mais alto na costa oeste americana)
Segundo dia, ate fort ross, 120.6 km com um desnivel acumulado de 1563 metros e altitude máxima de apenas 105 metros.
No terceiro dia, 151.6 km em 9.58 horas, acumulando 2041 metros mas com altitude máxima de apenas 192 metros!
Os números devem dar uma ideia do sobe e desce que e este troco de costa a norte de são Francisco.
Atravessei a "ponte 25 de Abril americana" ( a famosa Golden Gate Bridge, que partilha grandes semelhanças com a nossa ponte sobre o Tejo), já bem pela noite dentro. A "Burra", esta já há vários dias, amarrada a um gradeamento, no pátio desta pousada, situada no quarteirao chinês no centro da cidade, num descanço bem merecido.
São Francisco e uma daquelas cidades americanas, que tem caracter próprio; o relevo da cidade, com as suas muitas colinas, arquitectura europeia, os quarteiroes das varias etnias e a migração de pessoas de toda a parte do mundo , tornam esta cidade fascinante e atractiva para passar uns dias..

São Francisco e também um marco importante nesta minha odisseia em duas rodas, pois marca a transição entre o clima de 4 estaçoes para o norte, com a entrada progressiva nas zonas semi-tropicais e tropicais da América central.
O resto do meu itinerário nos estados unidos ainda não esta definido. Estou a debater entre seguir a costa ate Tijuana passando por los Angeles, ou atravessar a fronteira pelo interior (nogales), passando por Las Vegas. Seja qual for a a opção, já estou a começar a sentir o cheiro da comida mexicana, da sua musica, das margaritas tomadas junto ao mar azul e das temperaturas tropicais...

Nuno Brilhante Pedrosa
em São Francisco, Califórnia, EUA.

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