A parte Chilena da estrada sobe impiedosamente dos 2500 metros aos 4500 metros em pouco mais de 40 km, depois mantêm-se acima dos 4000 metros até Paso de Jama (4200m), na fronteira com a Argentina - a 160 km de San Pedro de Atacama. Esta parte do altiplano para além de ser mais alta do que no lado Boliviano oferece paisagens tão ou mais fantásticas do que no país vizinho e com a grande vantagem da estrada ser toda alcatroada.
A nossa decisão em cruzar a cordilheira Andina para o lado Oeste era parte de um ambicioso plano de regressar ao altiplano Boliviano e a La Paz, para posteriormente descer pela estrada “de La muerte” para o amazonas e sair do país em barco pelo rio Mamoré. Mas todos esses planos iriam ser drasticamente alterados uma vez que entramos em território Argentino.
A nossa passagem pelo Chile foi demasiado curta para termos uma percepção imparcial do país, e ao final de 8 dias atravessamos, com certo agrado, a fronteira para a Argentina. O Chile pareceu-nos um país demasiado caro, moderno e “civilizado”, e com uma paisagem humana muito homogênea, pelo menos para padrões Latino-Americanos. Com certeza que o Chile tem lugares maravilhosos para cicloturismo, entre eles a Carretera Austral no Sul do país, que eu espero percorrer numa das últimas etapas da minha travessia do continente Americano.
Depois das aborrecidas formalidades aduaneiras em Paso de Jama, dava entrada no 17º país da viagem. O altiplano Argentino, a uma altitude que ronda os 3500 metros, é muito mais aborrecido que os seus homólogos Chileno ou Boliviano, com muita pampa (vales abertos), monótono e ventoso, e foi apenas quando chegámos perto de Susques que a paisagem começou a revelar a sua beleza com variadas e coloridas formações rochosas.
Centro de Susques.
Susques é a única aldeia neste trajecto de 430 km entre San Pedro e Purmamarca. Uma pacata aldeia com forte influencia andina e lugar de paragem para camionistas internacionais que frequentam esta estrada de alta montanha.
A pampa interminável e ventosa continua por mais 80 km até Salinas grandes – as maiores salinas da Argentina, mas diminutas quando comparadas com as de Uyuni ou Coipasa na Bolívia - começando a subir ao passo de Porterillos, que a 4170 metros de altitude seria provavelmente o último cole acima dos 4000 metros de toda a minha viagem.
O downhill de 2000 metros para Purmamarca foi algo espetacular. A estrada cai vertiginosamente na Quebrada de Humahuaca (desfiladeiro), entrelaçando-se na encosta da montanha de rocha sedimentaria esculpida pelo vento e leito de rios que ao longo dos milénios criaram formações rochosas e um arco Iris de cores de uma beleza tão invulgar que a UNESCO decidiu declarar toda a Quebrada de Humahuaca como património natural da humanidade.
Purmamarca
As cores vívidas das rochas são particularmente bonitas em redor da aldeia turística de Purmamarca onde nos alojamos no parque de campismo da casa de Bebo Vilte a tempo de preparar uma deliciosa Parrillada argentina - carne de vaca grelhada na brasa e regada com vinho Toro cujo preço é pouco superior a um bom sumo natural. Algo me diz que vou adorar este país!
Várias aldeias pitorescas dotam a paisagem da Quebrada de Humahuaca ao longo dos seus 150 km de extensão, entre outras, a aldeia de Tilcara, 30 km a norte de Purmamarca onde passamos uma semana simplesmente a usufruir das temperaturas amenas e a relaxar dos últimos meses de viagem pelo árido e frio Altiplano Andino. Estava na altura de abrir os guias e estudar os mapas com maior rigor. A direcção das nossas próximas pedaladas iria definir os seguintes meses de deambulação ciclo-turística pela America do sul. Seguir directamente para Sul rumo à patagônia pela ruta 40 era a opção menos favorável, uma vez que estávamos sedosos por calor e selva, mas seguir com os planos iniciais de voltar para norte e regressar ao (frio) altiplano antes de descer ao Amazonas Boliviano estava a tornar-se numa opção cada vez menos apetecível. Por outro lado, e depois de análises mais cuidadas, não tínhamos tempo suficiente para ir a La Paz descer a famosa estrada da morte e fazer a viagem de barco pelo rio Mamoré, uma vez que isso implicava deslocarmo-nos vários milhares de quilómetros para Norte. Depois de uma semana de relax em Tilcara chegamos a um consenso: iríamos descer a garganta de Humahuaca até à cidade de Jujuy e uma vez aí, veríamos as opções de viajar em autocarro até Santa cruz na Bolívia, evitando assim o altiplano e seguindo posteriormente para o Pantanal no Brasil. Uma opção que eu não estava 100% de acordo uma vez que isso implicava por a burra num transporte motorizado, mas como era uma viagem de 1000 km directamente para norte, não pus objeções. Dizem que “o destino se escreve por linhas tortas”, mas com tantas voltas e mudanças de itinerário, quando iria chegar a Ushuaia e terminar esta viagem? Em 2010?
Em San Salvador de Jujuy ficamos alojados na “casa de ciclistas” do Benjamin e da Ana, na companhia dos seus 7 filhos e de uma enorme quantidade de cães, alguns dos quais insistiram em partilhar a nossa cama, mesmo contra minha vontade. Na casa da Ana e do Benjamin estavam também alojados 2 outros ciclistas; o Filipe, um simpático e cordial Mexicano de 55 anos que começou a pedalar em Ushuaia, na ilha da Terra do Fogo, há 4 meses atráz e pretende chegar à sua terra natal no México em meados do ano que vem. O Filipe já estava na casa de ciclistas há mais de um mês, impossibilitado de continuar a sua viagem por estar em recuperação de um acidente num parque natural ali por perto onde partiu ambos os punhos. Na casa estava também o Antony, um mochileiro Francês a viajar pela America do Sul e que decidiu adaptar as suas mochilas a uma velha bicicleta comprada em segunda mão na Ciudad Del Este no Paraguai, e com ela desafiar as estradas do altiplano Boliviano (boa sorte Antony!) e que teve a incrível amabilidade de por os seus planos de viagem de lado e cuidar do Filipe durante a sua recuperação, uma vez que este, com ambos os punhos partidos, estava impossibilitado de fazer o que quer que fosse.
Eu e o Antony
Familia na casa de ciclistas em Jujuy
Companheiros de quarto
Bejamin
Filipe e um dos filhos do bejamin
A cuidar de todos nós estavam a Ana e Benjamin, um amável e divertido casal Argentino que decidiram partilhar a sua humilde casa com os ciclo-turistas que ao passarem por Jujuy têm o privilégio de os conhecer. O Benjamin também viajou em bicicleta por toda a America do Sul há cerca de 20 anos atrás, mas com um objectivo muito peculiar, quase carismático: o de contagiar as pessoas com a sua alegria de viver.
Bejamin
Viajava com 100 quilos de carga, na sua maioria equipamento essencial para os espetáculos de mímica, teatro e música que encenava em praças de aldeias, ruas de cidades, escolas ou apenas para amigos. Instrumentos construídos por ele que completavam a coreografia da sua alegria de vida e do seu sorriso contagioso.
Passamos por ali uns dias, aproveitando para viajar a Salta em autocarro, conhecer a bonita cidade e aproveitar a oportunidade para comprar um aro novo para a roda traseira que com 24.670 km de rodagem já estava a ponto de se partir.
Cidade de Salta
Estava na altura de partir de novo e com novos planos de viagem definidos. Finalmente tínhamos conseguido “arrumar a casa”, como a Joana lhe chamou. Ela iria em autocarro para Sucre na Bolivia onde a esperava uma amiga e mais um novo cartão de credito - o segundo que perde na viagem! Posteriormente iria em autocarro para Santa Cruz, onde nos encontraríamos de novo dentro de aproximadamente uma semana. Eu, dando continuidade à minha teimosia de fazer o máximo possível da viagem em bicicleta, iria ter com ela na minha burra, mas como premio tinha pela frente uma das etapas mais aborrecidas de toda a viagem. Uma etapa incrivelmente rápida com 964 km percorridos em apenas 7 dias a uma media de 138 km por dia e cujo o que vi e presenciei não merece mais do que um ou dois parágrafos de descrição!
Na parte Argentina desta eufórica etapa, os 400 km de estrada alcatroada entre Jujuy e a fronteira de Pocitos não têm qualquer interesse cicloturístico. A estrada sem bermas e de trafego intenso atravessa as planícies agrícolas do Norte da província de Salta, e o único digno de registro nesta parte da etapa foram os muitos camiões a passarem por mim a 200 km por hora, os ziliões de canas de açúcar em ambos os lados da estrada, ou a ocasião em que um motociclista embriagado quase que me atropela na minha tenda a meio da noite depois de eu ter decidido montar a tenda no meio de um caminho dentro de um pequeno bosque, o qual supus estar em desuso. O senhor ficou tão furioso com a minha obstrução da “via publica” (como ele chamou ao acesso á sua casa algures no bosque) que decide regressar mais duas vezes durante a noite, num estado de embriaguez tal que à terceira, ouço-o a cair da moto algures na floresta escura.
No lado Boliviano, e para minha completa surpresa, a estrada não só tem umas bermas fantásticas como não tem absolutamente tráfico nenhum devido a um bloqueio de estradas, a forma de protesto da população local que luta em favor á autonomia da região do Chaco e de outras províncias da chamada “media luna” que abrange quase todas as províncias das terras baixas do país. Apesar de ter a estrada quase só para mim durante várias centenas de quilômetros, a paisagem continua aborrecida e sem grande interesse para o ciclismo. Estava determinado a concluir a etapa o mais rapidamente possível e no 7º dia, aproveitando a brisa que soprava de Sul e a estrada plana, pedalo todo o dia e pela noite dentro, chegando a Santa Cruz de La Sierra com um novo recorde no conta-quilómetros: 218 km!
Santa Cruz de La Sierra é a maior, mais moderna e mais cosmopolita cidade da Bolívia e que deve a sua bonança ao contrabando de cocaína dos anos 80 e 90 que impulsionou a economia local. Posteriormente a exploração de petróleo e agricultura mecanizada trouxe maior prosperidade para a região. Hoje em dia a moderna cidade de Santa Cruz é o epicentro da luta das recém proclamadas regiões autónomas da nova Bolívia dividida, e Ruben Costa, o perfeito local, o líder e principal oponente às políticas do governo do presidente indígena Evo Morales.
A situação social e económica que se vive actualmente no país é bastante tensa, e a instabilidade política está a levar o país à beira do colapso. A eleição de Evo Morales ao poder, o primeiro presidente indígena da America Latina, trouxe à superfície as feridas de descontentamento deixadas pela continua submissão económica e social dos povos indígenas a uma diminuta minoria elitista (grande parte dela de descendência Europeia) que controla todo o sector produtivo do país, deixando a esmagadora maioria da população, em particular a que vive no altiplano, em níveis de pobreza dos mais baixos de todo o continente. Evo Morales é a voz dessa população indígena, 65% dos cerca de 10 milhões de habitantes do país, e a sua única esperança, no entanto o lobby dos descendentes de colonos que vivem nas terras baixas é demasiado forte e não o deixam governar. A sua política populista e de nacionalização da riqueza nacional está completamente desactualizada num contexto mundial e em particular numa era em que a America Latina tenta com dificuldade afirmar a sua posição mundial. Penso que não tardará a que tudo volte a estar como estava antes, isto é, o poder de regresso aos descendentes de colonos e os indígenas entregues de novo ao seu próprio destino. Entretanto, Paros, ou bloqueios de estradas, é uma ocorrência diária por todo o país, que para além das insubstituíveis perdas de vidas humanas nos conflitos com as autoridades, tráz caos económico com a falta de distribuição de alimentos, combustíveis e livre transporte de passageiros. Uma situação que afecta a todos incluindo ciclo-turistas como eu e a Joana.
Já estou em Santa Cruz quase há uma semana à espera da Joana que está “refém” de um desses bloqueios de estradas na cidade de Sucre, a capital constitucional da Bolívia. Todas as estradas de acesso á cidade foram bloqueadas pelos protestantes que reivindicam a devolução ás províncias produtoras de petróleo, um imposto estatal sob combustíveis. Impossibilitada de viajar por terra esta a por a possibilidade de vir ao meu encontro de avião. De momento resta-nos apenas esperar, eu em Santa Cruz e a Joana em Sucre, até que a situação se resolva.
Na última etapa de ciclismo na Bolívia iremos continuar a nossa ciclo-deambulação pelo continente Americano seguindo um pouco para Nordeste visitando uma serie de aldeias coloniais com antigas missões jesuíticas, parte do património mundial da UNESCO, e depois para Sudeste com direcção ao Brasil. Pelo caminho iremos tentar cruzar o Pantanal Boliviano através do Parque Natural de San Matias para depois entrar no Brasil, ou pelo menos eram esses os nossos planos.
Nuno Brilhante Pedrosa