5.27.2008

De Ayacucho a Cusco (Peru)

Por la verdad e la justicia

Na esquina da avenida Agustin Gamana com a avenida prolongação Jr Liberdad, na periferia norte da cidade de Ayacucho encontra-se o "Parque de la Memoria" em cujo centro se ergue uma escultura metálica com três faces que representam o passado presente e futuro dos Ayacucheños, ou habitantes do departamento de Ayacucho.

O passado: O rosto vendado de uma pessoa a gritar, uma foice e enxada, uma granada do Sendero Luminoso e a espingarda das forças armadas e policiais.
O presente: a balança judicial reclinada, caveiras e ossos das vitimas da violência e um livro aberto onde se lê:"la verdad se sigue escribiendo".
E o futuro: uma espingarda partida em cujo o centro nasce uma planta, uma pomba a voar e duas mãos unidas em sinal de reconciliação.

O departamento de Ayacucho foi uma das zonas mais afectadas pelo conflito armado interno que se viveu no Peru de 1980 a 2000 entre o grupo guerrilheiro pro-marxista Sendero Luminoso e as forcas de segurança do governo Peruano, este conflito deixou um saldo de cerca de 60.000 mortos e muitos milhares de desaparecidos, violados, torturados, na lista de violacoes dos direitos humanos.

Caminhos Incas

Pedalávamos monte abaixo, monte acima, por uma das regiões mais remotas do pais onde o alcatrão ainda não chegou e a estrada principal é apenas um conjunto de caminhos rurais não assinalados num estado de deterioração tão avançado que me deixava a questionar se não seriam os restos dos verdadeiros caminhos Incas, afinal de contas dirigiamo-nos para Cusco e Machu Picchu, o centro desse grande império sul americano.

Nesta parte do Peru as montanhas andinas são cortadas por inúmeros canyons, criando vales profundos e dificultando a construção de estradas. Dia após dia, durante quase duas semanas rompemos por esses vales profundos e passes frios e desolados, subindo e descendo montanhas impiedosamente, levando quase ao limite os nossos esforços físicos e mentais.






Tínhamos acabado de atingir mais um passe acima dos 4000 metros de altitude. Recordei-me da minha felicidade ao atingir os 2500 metros na encosta de uma cratera no parque nacional de Yellowstone nos Estados Unidos, quase há 2 anos atrás. Agora, já lhe perdi o conto ás vezes que pedalei acima dos 4000 metros.

Antecipávamos o downhill, a recompensa depois de uma árdua subia e do êxtase de atingir o passe. Mas surpreendentemente, o downhill de 50 kms iria levar-nos 2 dias a fazer. O caminho estava tão deteriorado que nos obrigava a descer a velocidades pouco superiores ás da subida. A Joana a certo ponto desmonta e empurra a sua "Marina" na descida para aliviar as dores nas mãos de tanto travar e o desconforto do selim, causado pelo saltitar da burra ao desviar-se das pedras, buracos, calhaus, areia e outros obstáculos, e também para poder retirar os olhos da estrada e contemplar a paisagem andina. Noto o sofrimento físico e mental nas expressões da sua cara.









Estávamos bem longe das planícies e das ferias idílicas de cicloturismo que tínhamos feito juntos o ano passado quando me acompanhou por duas semanas no Yucatan, México por paisagens completamente planas. A sua primeira viagem de cicloturismo foi a fonte de inspiração para viajar nos Andes. Mas aqui no coração das montanhas mais elevadas do continente a realidade era outra. Apetecia-me gritar-lhe e pedir perdão em nome das montanhas e prometer que em breve iria ser mais fácil. Mas sabia que não. A próxima viagem iremos pedalar para as planícies alentejanas, prometo!

Depois da tortuosa descida (sim, descida!), veio outra subida, mais 45 kms de estrada de calhau rolado que nos levou outros 2 dias a fazer. O suor criado pelo esforço físico acrescido ao calor que se sentia no fundo dos vales, escorria o repelente pele abaixo expondo a carne aos minúsculos inimigos que nos perseguiam o tempo todo, os mosquitos.
Cada dia terminado em completa exaustão.



Mira, Gringo...Gringo!!!

Os caminhos de terra e pedra entre Ayacucho e Abancay atravessam uma zona remota do Peru, esquecida pelo governo central, onde poucos estrangeiros se aventuram, como consequência, os poucos que por ali passam são fonte de grande curiosidade por parte da população indígena local. Por vezes os encontros eram tão surrealistas que nos faziam sentir como dois marcianos em bicicletas.

A passagem por uma aldeia cujas casas em adobe pareciam extencoes da "Pachamama", terra mãe, moldadas em forma rectangular onde cujos habitantes , muitos deles, ainda vivem sem electricidade ou agua potável. A mão no travão e pé no chão em frente á única "tienda" da aldeia, implicava o confronto com uma multidão de crianças e adultos curiosos. Antes da nossa chegada, com o aproximar das burras, a palavra "Gringo" percorria o ar vinda de todo o lado, como se fora o chamamento para algum evento social na Plaza de Armas da aldeia. Depois vinha o silencio e o olhar incrédulo das crianças. Comprávamos alimentos e agua para a noite e partíamos em busca de um lugar para acampar. Com o afastar das bicicletas a palavra "gringo" voltava a ouvir-se, cada vez mais forte.

Numa ocasião uma criança que não aparentava mais de 2 anos, ao colo da mãe á beira da estrada, grita de pulmões cheios:"gringo! gringo!". Provavelmente ainda não falava Castelhano, mas já conhecia a palavra "gringo". Noutra ocasião um grupo de agricultores trabalhando a terra gritaram á nossa passagem: Gringo! Gringo! ao mesmo tempo que vários torrões de terra voaram acima da minha cabeça. O som da palavra gringo estava a tornar-se tão difícil de ultrapassar como uma boa subida. Como é que esta palavra se propagou tanto aqui nas montanhas andinas Peruanas tão longe do seu lugar de origem?

Segundo me contou um amigo mexicano em Puerto escondido, a palavra "Gringo" deriva da guerra México-Americana de 1846-1848, quando as tropas americanas chegaram é cidade do México nos seus uniformes verdes e foram confrontados com protestos da comunidade local que gritava: "Green go home", "Green go!". Desde então que a palavra gringo se popularizou entre a América latina como uma forma de identificar os Americanos, mais tarde generalizada a qualquer estrangeiro.

Essa expressão tem me acompanhado ao longo dos meses, mas em nenhuma outra parte da América latina a ouvi com tanta frequência e forte entoação como nesta etapa. Apesar de normalmente não haver aparente maldade no contexto da palavra, por estas bandas, reflecte um pouco o ressentimento que existe pela continua exploração dos recursos naturais (ouro e afins) pelas multinacionais estrangeiras. Ciclonautas são os viajantes mais expostos á realidade local e como consequência os mais vulneráveis a irritação que a palavra pode provocar. Tenho conhecido mochileiros a viajar no pais que por viajarem de autocarro de cidade em cidade e ficarem apenas em hotéis recomendados pelo Lonely Planet, quase que não ouvem a palavra Gringo, sorte a deles!

A "vingança de Atahualpa"- versão Peruana inventada pela Joana para a sua diarreia e febre, obriga-nos a parar por um dia na aldeia de Chincheros, a primeira aldeia com alojamento depois de 6 dias de viagem. Altura também para descansar das árduas subidas e para trocar os toalhetes de bebe por um duche de verdade! Foram ainda mais 5 dias de sobe e desce e 180kms ate alcançar o alcatrão 18 kms a sul de Abancay, cidade onde chegamos já pela noite dentro.

Regressar ao alcatrão foi um grande alivio para a mente, mas não o final das subidas. Depois de Abancay a estrada sobe 1500 metros impiedosamente durante 35 kms num ziguezague constante que termina apenas no passe de abra Sorllaca a 4000m de altitude, onde acampamos com excelentes vistas para os nevados de Salcantay. E com mais uma descida ao canyon Apurimac e uma outra subida, chegamos finalmente á muito antecipada cidade de Cusco. Esta etapa de 600 kms com mais de 10.000 metros de desnível acumulado, com 7 passes, 4 deles acima dos 4000m, foi sem duvida a mais dura da viagem até ao momento.

Casa Hogar los Gorriones

Tinha ainda fresca na memoria o sorriso das crianças especiais da casa Hogar los Gorriones. Do Ebersom do Fermin do Luís e de tantas outra crianças do orfanato de Ayacucho onde a Joana trabalhou como voluntária durante 3 semanas. A tristeza e dor nos olhos do Gil, responsável pelo orfanato, na hora da nossa despedida causada pelo sofrimento em saber que em breve a sua esposa, "mãe" das 35 crianças do orfanato, iria deixa-los por um cancro no fígado. Viemos a saber do seu falecimento dias depois através de um e-mail.

O Gil e a Chantal são um casal Franco-Belga que dedicam as suas vidas ás 35 crianças do orfanato Hogar los Gorriones criado por eles em 2002. Uma historia heróica cujos protagonistas transformaram a vida a essas crianças dando-lhes um lar, uma família e uma razão para viver. Muitas das crianças são crianças especiais com paralisia cerebral e outras deficiências neurológicas, rejeitadas pelos pais, algumas foram encontradas em caixotes do lixo, na rua ou em casa de famílias a viver com os cães, como foi o caso do Fermin. São historias tristes e reais de muitas crianças Peruanas e historias de esperança que marcaram a minha passagem por Ayacucho. A ajudar-los, uma equipa de voluntários de todo o mundo na qual a Joana participou sentindo bem mais de perto a realidade dessas crianças. Poderão saber mais detalhes dessas realidades na sua próxima cronica em movimentos constantes.

Na hora da despedida a Joana organizou um pequeno lanche e uma mostra de slides da nossa viagem, na qual eu participo mostrando pecas do nosso equipamento ás fascinadas crianças. Uma realidade diferente da deles que quisemos partilhar. Os breves momentos que por ali passei refrescaram-me o espírito e enriqueceram-me a alma. Viajar em bicicleta não é só subir montanhas, desbravar estradas incógnitas ou observar paisagens idílicas, é também sentir de uma forma mais intima a realidade da vida das pessoas com quem nos cruzamos.

Amanha iremos visitar as ruínas da citadel de Machu Picchu, uma das maiores atraccoes turísticas não só do Peru, mas também de toda a América Latina e o ponto alto da viagem para muita gente. Para mim um dos pontos altos desta árdua etapa foi o sorriso estampado na cara dessas crianças.





Relembro que esta viagem não é só minha, mas também das crianças especiais em particular as da APPC de Leiria com as quais dou pedaladas solidarias. Se deseja participar nesta viagem e ajudar as crianças especiais pode fazer-lo contactando a APPC-Leiria ou através deste site, detalhes no link da caridade.

Nuno Brilhante Pedrosa.
Cusco, Peru.

1 comment:

António Rebordão said...

Fantástico! Delirante! Possante!

Continue a boa viagem e obrigado pela partilha.