9.24.2007

travessia para a Colômbia parte III (Colômbia)

A bordo da Panga colombiana

Vista do céu azul num dia de sol e mar calmo, a lancha a afastar-se da ilha Ballena rodeada de praias de areia branca e fina, coberta de coqueiros e com um mar verde transparente que se ia transformando em azul turquesa e depois no azul escuro do vasto oceano, podia parecer que estava a iniciar uma viagem algures numa paisagem idílica das caraíbas. Mas às 7.10 da noite a bordo de uma lancha de contrabando com 3 desconhecidos, completamente às escuras num mar agitado, o cenário era aterrorizante. O meu único reconforto era saber que íamos para a Colômbia e não vínhamos da Colômbia o que assegurava que não era contrabando de narcotráficos. O que era nunca cheguei a saber e nem me atrevi a perguntar. Não tardou que isso fosse a menor das minhas preocupacoes.

A mercadoria estava apinhada até bem acima da linha do barco e apenas com um espaço vazio a meio, com cerca de meio metro de comprimento e em toda a largura da lancha. Foi neste "buraco" que me enfiei e viajei as 11 horas sem me mexer. Ao meu lado viajava o ajudante cujas feições não iria ver até ao amanhecer. A sua função durante toda a viagem era retirar com um recipiente de plástico a água que ia entrando quando as ondas eram mais fortes e da intensas chuvadas que caíram por duas vezes. Julgo que a razão de esses "buraco" existir era essa mesmo.

Ocasionalmente e a mando do "capitão", o rapaz subia para cima da carga, e com um agilidade que demonstrava hábito, mantinha o equilíbrio olhando para o escuro infinito do oceano, tentando avistar algum ponto de referência. Alguma montanha na costa, a luz de alguma patrulha colombiana, e na parte final da viagem, algum indício de terra firme, uma claridade ou um farol.

Na parte de trás da Panga (barco em colombiano) iam os outros 2 tripulantes cada um sentado em frente a um motor, apesar de usarem apenas um, viajávamos a bom ritmo. O piloto tinha à sua frente um instrumento rudimentar de navegação dentro de uma caixa de madeira que ia consultando ao longo da viagem com uma lanterna.

Os 3 homens falavam pouco. Os momentos de silêncio eram enormes. Por vezes de meia hora ou mais. E comigo então, nem falavam. Eu era um passageiro pouco desejado. Estava ali como se fora mais uma peça de contrabando. 50 dólares de lucro. Era essa a única razão porque me levavam.

Tentei várias vezes meter conversa com o companheiro ao meu lado, ofereci-lhe um cigarro, falar da vida do mar, do futebol, mas as respostas eram sempre secas e curtas. Do meu lado direito, a linha preta das montanhas ia baixando até se juntar à linha infinita do oceano. A costa desapareceu de vista e viajávamos agora em mar aberto. O mar era um pouco mais agitado e a embarcação movia-se por todo lado. O céu estava nublado e viam-se algumas estrelas, mas não havia luar o que tornava a noite pesada e sinistra.
Tudo aconteceu tão rápido que não tive tempo para me preparar para a viagem. O meu impermeável estava dentro das malas na parte da frente do barco. Com toda a agitação da embarcação não me atrevi a ir buscá-lo. Passei a noite toda a levar com jorros de água no rosto e no corpo, mas n ão estava frio.

A noite foi passando, longa. Interminável. Minutos pareciam-me horas e horas um tempo infinito.
Depois veio a fuga à patrulha colombiana, em que o capitão liga o segundo motor e zarpa a toda a velocidade cortando as ondas agitadas. Seguiu-se uma tempestade, e outra mais tarde, cujos relâmpagos iluminavam a vastidão do mar como se fossem flashes disparados em frente dos meus olhos. Lembrei-me de "cape fear", da minha mãe, da tranquilidade das estradas, e do quanto já tinha alcançado nesta viagem. Queria aventura, pois aqui a tinha e em dose reforçada.

Avistamos terra ainda era de noite, mas não foi até ao amanhecer que o barco encalhou na praia a poucos metros da areia. Um grupo de pessoas esperavam-nos. Alguns curiosos, outros para ajudar a descarregar a mercadoria, e 3 deles, os compradores, em jeeps land rover antigos.
Passo a bicicleta e os alforges a uns jovens que entretanto se tinham metido ao mar. Já em terra meio azamboado, tiro a t-shirt e espremo o excesso de água voltando a vesti-la. Não havia tempo para mudar de roupa. Queria sair dali o mais depressa possível.
"La careterra, para onde?", perguntei.
Um jovem indica-me o caminho apontando para as marcas de rodados na lama seca de uma pastagem. Parecia que tinha desembarcado em África. Vastas pastagens com árvores de grande porte a dar sombra ao gado e às casas simples feitas de bambu e revestidas com barro. Os seus habitantes eram todos negros, descendentes dos escravos que povoam não só toda a costa atlântica da Colômbia como grande parte da costa da América central e caraíbas.
Momentos depois passam os jeeps carregados.

Segundo a informação do "capitão", a primeira aldeia seria Moñitos a 6 km da praia, aí passava a estrada alcatroada.
14 km depois entrava em Moñitos, para o alcatrão foram mais 7. Estava cansado. Não tinha água, dinheiro colombiano ou mapa. Tinha entrado ilegalmente no país e não fazia a mínima ideia de onde estava. Em Moñitos parei no centro da aldeia e pedi a alguém para que me enchesse a garrafa com água da torneira.
"Cartagena, está longe?". "Uuuuuh lejissimo", respondeu alguém. Um jovem que insistia em falar comigo em inglês desenhou-me um mapa da costa do atlântico num pedaço de papel assinalando todas as cidades até Cartagena. Por baixo de
Cartagena escreveu: 400 km. Foi o meu mapa até chegar a Cartagena.
Agradeci-lhe e parti.

Ainda fiz 62 km nessa manhã até à cidade de Lorica onde procurei um hotel. Um tanque blindado passeava pelas ruas da cidade. Procurei um restaurante onde tive uma introdução à culinária colombiana com uma "badera paisa" regressei ao hotel e às 4 da tarde estava a dormir.
Passei um dia em Lorica a recompor-me da viagem. Agora, que tudo passou, parece-me que não foi tão perigoso. Lembro-me da postura inalterada dos tripulantes (excepto na fuga à patrulha), como se fora apenas mais uma viagem na sua vida rotineira de contrabandistas. Mas para mim a realidade pareceu-me outra. Apeteceu-me dizer-lhes o quanto admirava a bravura do seu trabalho e o risco diário que corriam. Mas não disse. Aliás, o "perto de Cartagena" prometido pelo capitão foram 290km.

Pedalei ainda por 3 dias com a preocupação de não ter um carimbo no passaporte, mas as 2 únicas vezes que fui abordado pelos inúmeros postos de controlo (que parecem ser característicos nas estradas colombianas), os polícias estavam mais interessados na liga de futebol portuguesa, na minha catana enferrujada (motivo de risada geral) ou quantos km fazia por dia.
Amanhã chega a Verónica e começa uma nova etapa da viagem.
Espero que seja menos "agitada".

Nuno Brilhante
Em Cartagena

4 comments:

JORGE said...

Que aventura!! Acho que me borrava todo! Não consigo imaginar o que me passaria pela cabeça durante essas 11h de ansiedade. Deve ter dado vontade de atirar à água e esperar ser resgatado pela patrulha, não?

Anonymous said...

E então? Não há noticias? aconteceu alguma coisa? Por essa Colômbia tudo é possível...

António Rebordão said...

As fotografias na parte 2 estão deslumbrantes. Força e continua a escrever, eu e os meus amigos, adoramos ler as tuas novas, ver as fotos e imaginar o que está mais além do nosso bairro e para além destes pinheiros. Força!

Abraços

Anonymous said...

És grande! parabéns pela coragem e determinação, fizeste a viagem sozinho ou com uma equipa de filmagens?
Abraço