Eu sabia perfeitamente localizar o Paraguai no mapa, mas se me perguntassem há dois anos atrás para citar duas ou três coisas de relevância acerca do país e teria que pensar duas vezes antes de falar. Hum... não tem mar.... foi colonizado pelos espanhóis, tem o mais famoso mercado de contrabando da America do Sul (Cuidad del Este) e a capital é Asuncion, ou será Montevideo?
Já tinha viajado pelos recôndidos deste planeta, mas tinha que admitir que pouco ou nada sabia acerca deste pequeno país. E era essa mesma indigna ignorância que me tinha atraído a querer conhecê-lo. Alguém no Brasil uma vez disse-me: "porque queres ir lá? Não há nada para ver, não há turismo". Bem, eu não preciso ver coisas, (muito menos turistas), o que eu quero é experiênciar coisas.
Um casal de brasileiros que conhecemos em Bonito tinham-nos advertido que o Paraguai era feio e perigoso. Eu sabia que não era verdade. Desde o inicio da viagem que ouço essa historia; Canadianos diziam que as cidades nos EUA eram perigosas, os Americanos por sua vez falavam dos perigos que iria correr ao viajar no México, etc, etc. Já para não falar do que os Panamenhos falavam dos Colombianos!
Damos inicio às nossas pedaladas no país e logo no primeiro dia iríamos ter a nossa primeira lição de historia Paraguaia. A 45 km a Oeste de Pedro Juan Caballero situa-se o Parque Nacional Cerro Corá, um pequeno e pouco visitado parque nacional que protege não só uma das ultimas florestas de selva atlântica do pais, mas que também tem um significado histórico para paraguaios: foi o lugar da ultima batalha da guerra da Aliança Tripla. Em meados de 1860 o senhor Varguez, o então dictador da pequena nação achou que o seu país não estava a receber o respeito merecido pelo mundo exterior e para rectificar esse "problema" decidiu declarar uma guerra em simultâneo ao Brasil, Argentina e Uruguai. Quando estes 3 países perceberam que estavam sobre ataque paraguaio conduziram uma ofensiva que dizimou 2/3 da população masculina adulta do país. Uma verdadeira catástrofe demográfica que levou a igreja católica a autorizar temporariamente a poligamia para aumentar a população do país, e o uso de trabalho infantil na construção de obras publicas.
As estradas dentro do parque Cerro Cora destruídas pelas chuvas
Casas abandonadas do antigo acampamento militar
Para nós, alheios a essas disputas do passado, o parque nacional Cerro Corá pareceu-nos um lugar paradisíaco para uns dias de descanso. Vegetação luxuriante, um pequeno rio para uns bons mergulhos e um parque de campismo gratuito nas velhas instalações militares sobre a sombra de grandes arvores, e sem vivalma em redor. Mas os alforjes apenas providenciaram comida para 2 dias e com certa pena tivemos que seguir viagem. Ainda hoje (retirando as muitas estatuas de dirigentes militares espalhadas pelo parque) imagino aquele lugar como um sitio idílico para ter uma casa de ferias.
Na verdade foi o único lugar de beleza natural que marcou a nossa passagem pelo Paraguai, o resto das nossas pedaladas pelo país foram através de uma vasta aldeia rural de pequenas fazendas onde a natureza esta completamente dominada pelo homem. É certo que não visitamos a parte Oeste do país e a vasta região do Chaco que ocupa 2/3 do território nacional com os seus pântanos e selvas quase impenetráveis e apenas ocupadas por pequenas comunidades de Menonitas e comunidades indígenas Guaranis. Essa área (talvez juntamente com o contrabando?) é símbolo do orgulho nacional.
Quase um século depois da guerra da triple aliança, o Paraguai estava de novo na sua capacidade máxima de luta e demonstrando que podia aprender com os seus próprios erros, decide mais uma vez, declarar guerra a um país vizinho, desta vês a um do seu próprio tamanho, a Bolívia. Esta foi uma guerra muito mais bem sucedida e o Paraguai conquistou essa vasta zona pantanosa que existia entre os dois países e que até aos dias de hoje esta praticamente inacessível e desabitada: o grande Chaco paraguaio.
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Avenida principal de Villa Rica
Brinquedos artesanais à venda nas estadas do Paraguai.
A casa do Dom Marco de Sra. Victoria que nos alugaram um quarto para passar a noite em Cruce Tacuati.
Mas quanto mais pedalávamos pelo Paraguai mais ficávamos surpreendidos com o que víamos. Apesar das suas estúpidas guerras do passado, os paraguaios demonstravam uma singeleza e amabilidade única, e veemente agarrados às tradições Guaranis, cuja língua ainda hoje é o principal idioma falado no país.
Pedalamos 736 km pelo Paraguai, todos eles em estradas de alcatrão com excelentes bermas e pouco trafico. Foi um constante sobe e desce através de uma paisagem ondulante e preenchida por pequenas fazendas. As casas em madeira à beira da estrada eram pequenas, mas sempre rodeadas por jardins bem cuidados, e para alem de alguns "sem terra" que viviam em improvisadas barracas de madeira revestidas por plásticos à beira da estrada ou à entrada das fazendas (como forma de protesto), parecia não haver muita pobreza, ou pelo menos não era visível.
Acampamento dos “sem terra”, um grupo que também existe no Brasil e que reclamam a devolução das terras dos seus ancestrais
Chegamos a Iby Yaú ao final da tarde e procuramos um hotel para passar a noite. Durante os nossos curtos 12 dias no Paraguai apenas acampamos no Parque Nacional Cerro Corá. Nesta parte do país não é fácil encontrar um local para colocar a tenda a não ser que seja no quintal de alguém. A paisagem rural esta completamente pintada de casas e parcelas de cultivo. As aldeias por vezes estendem-se por dezenas de quilómetros junto à estrada sem interrupção.
Iby Yaú era mais uma dessas aldeias campesinas e que deve a sua existência ao entroncamento de duas estradas principais. Algo que aprendemos na analise dos mapas do país foi que, se houvesse um cruzamento, haveria uma aldeia, mesmo que esta não viesse assinalada no mapa. O sol começava a perder a sua intensidade e preparava-se para se esconder por detrás do horizonte, varias crianças descalças brincavam despreocupadamente à beira da estrada alheias ao trafico que para além da ocasional carroça de bois era escasso. Apesar das suas roupas singelas, os sorrisos das suas caras e corpos saudáveis radiavam um certo bem estar. Alguns adolescentes jogavam voleibol numa rede improvisada entre duas arvores num parque de estacionamento, a apoia-los, um grupo de jovens raparigas sentadas junto a varias motos num jogo cúmplice de risadas. Ao lado do hotel, sentados nuns bancos arranjados em redor da sombra de uma grande arvore, um grupo de pessoas jogavam cartas por entre conversas do campo e goles de cerveja Pilsen. Por breves momentos o jogo foi interrompido com a nossa chegada e das nossas burras carregadas. Tocaram-se saudações amigáveis e algumas interrogações de curiosidade, e apesar dos contínuos olhos curiosos sobre as nossas burras o jogo retomou o seu rumo. Ao contrario de outros países como o Peru ou mesmo no Equador onde a nossa presença poderia significar uma reunião da aldeia inteira, aqui as pessoas pareciam saber respeitar o espaço do forasteiro, mesmo que seja raro ver um, em especial em duas rodas. Esta visão de um pais rural onde a riqueza, apesar de não ser abundantemente, parece estar equitativamente dividida pela população (salvo para um pequeno grupo que parece viver confortavelmente do contrabando junto às fronteiras ou das remessas de familiares a viverem no estrangeiro), o abraçar da terra, do seu cultivo, e a brandura da vida em redor do campo, da harmonia com a terra, iriam acompanhar-nos nas nossas pedaladas pelo país e tornar-se o ponto alto da nossa curta viagem no Paraguai.
O Sr Alberto, dono do hotel, recebe-nos com um caloroso comprimento e convida-nos a tomar Teréré com ele e a sua esposa. Teréré é uma infusão de ervas aromáticas (principalmente de Yerba Mate), cozidas e bebido frio, e que nas zonas rurais é muitas vezes servida no casco ou corno de uma vaca e sorvida através de um tubo metálico que é partilhado por todos. Tem um sabor amargo e acre que foi de imediato rejeitado pelas minhas papilas gustativas. Gosto adquirido imagino, a olhar pelas crianças que desde novas já estão com corno ou casco na mão!
Em Iby Yaú viramos para sul com direcção a Asuncion, a capital, já perto da fronteira Argentina. Deixamos as burras em Villarica e viajamos em autocarro a Asuncion regressando no mesmo dia.
Apesar de Asuncion não ter o glamour da arquitectura colonial existente noutras capitais Latinas, de facto os seus edifícios parecem uma amalgama de estilos difíceis de identificar, mas existe uma certa ordem e fleuma citadina que não se encontra noutras capitais latinas.
A Joana tinha o seu regresso a Portugal marcado para dentro de poucas semanas e já não nos restava muito tempo para deambulações em duas rodas. Apressamos as nossas pedaladas rumo à Cuidad Del Este onde chegamos 3 dias depois já ao anoitecer.
Dando jus a inúmeras historias que tínhamos ouvido acerca da falta de segurança nocturna na cidade e aos conselhos da dona do hotel onde nos alojamos, refugiamos os nossos corpos cansados debaixo do ventilador do quarto e já não saímos. Vários tiros vindos algures de uma rua nas traseiras do hotel asseguraram a estadia nos nossos aposentos para o resto da noite.
Durante o dia o ar da cidade, apesar de caótico, era mais leve, talvez por ser domingo e as lojas fecharem depois do meio dia. Centenas de vendedores de rua interactuam com os milhares de brasileiros, argentinos e turistas que cruzam a fronteira para fazerem as suas compras no que deve ser o maior mercado de bens duty free e de contrabando ao ar livre da America do sul. Convenientemente localizada na convergência de 3 fronteiras, (Brasil, Argentina e Paraguai), Cuidad del Este é um paraíso fiscal para comprar qualquer tipo de bens electrónicos e não só, verdadeiros ou não... Nas ruas adjacentes à avenida internacional podemos encontrar desde o ultimo modelo de GPS a excelente copias de canetas Mont Blanc, relógios Rolex, armas AK-47, sacos de marijuana, os mais recentes filmes em DVD por pouco mais de um dólar, ou até mesmo acessórios para bicicletas Shimano.
Chegada a Cuidad Del Este
A moeda Paraguaia, o guarani, deve ter sido do dinheiro mais desgastado e corroído que eu jamais usei...
Avenida internacional, a principal arteria da Ciudad Del Este
A Joana aproveitou para comprar souvenirs aos índios Guaranis que um pouco desarticulados de toda aquela atmosfera, ali se deslocavam com os seus artefactos no desejo que fossem tão apelativos como o ultimo modelo de uma câmara fotográfica Nikkon, o portátil Sony, o écran panorâmico da Panasonic, que se viam das montras em frente das quais estendiam as suas mantas de artesanato. Deixamos Ciudad del Leste pouco depois do meio-dia, a cidade desapareceu no silencio e com as lojas fechadas a cidade desertou.
Cruzamos a fronteira para o Brasil e atravessamos a cidade de Foz de Iguaçu, cerca de 20 km depois estávamos em Puerto Iguazu, no lado Argentino. (as 3 cidades estão praticamente juntas apenas separadas pelas confluências dos rios Paraná e Iguaçu)
Com a chegada a Puerto Iguaçu, chegávamos também à meta final da viagem em bicicleta para a Joana. Um momento especial que mereceu ser celebrado de forma não menos especial.
Mas a viagem não terminava ali.
Estava na altura de deixar a burra de lado por uns tempos e tirar umas férias....das férias!
Vejam tambem esta viagem atravez dos olhos da Joana em www.movimentos-constantes.blogspot.com
Nuno Brilhante Pedrosa