3.31.2008
O deserto de Sechura e Trujillo (Peru)
Com a chegada á fronteira Peruana estávamos de regresso às "tierras calientes". A fronteira de Macará, situada a 600 metros de altitude, é um dos 4 postos fronteiriços entre as duas nações, e ao contrario do que é comum nas fronteiras da América latina, ali a atmosfera respirada era bastante tranquila.
Menos tranquilas estavam as águas do rio Calvas, que passava por debaixo da ponte que ligava os dois países e cenário para a actividade que parecia animar aquele pacato posto fronteiriço: o contrabando!
Jovens rapazes, aproveitando o olhar indiferente dos oficiais, atravessavam a nado barris de gasolina, desafiando a forte corrente do rio e muito provavelmente as suas próprias vidas. Questiono-me se a renumeraçao compensará o risco, mas como é comum nestes países, provavelmente não.
O visto de 3 meses é gratuito para cidadãos portugueses e é também valido para outros países da comunidade andina incluindo a Bolívia. Depois dos vistos preenchidos e do passaporte carimbado estávamos prontos para desbravar o novo pais.Enquanto o Jeff remendava o primeiro de uma serie de furos que iria ter nos próximos dias, causado pela sua "nova" roda de 10 dólares comprada na cidade de Macará, eu e a Joana tínhamos a nossa introdução á "latinidad" Peruana: No que parecia ser o único banco disponível, tentamos trocar alguns dólares pela nova moeda -o sol, mas sob um pretexto irrisório, os nossos dólares foram recusados pelo sorridente funcionário bancário. O seu amigo que se encontrava "por acaso" ali, tinha o bolso bem recheado de soles peruanos e prontificou-se a efectuar a transacao. Não muito convencidos agarramos no dinheiro e seguimos viagem.
Toco com os dedos no chão,como sempre faço ao atravessar uma fronteira, para sentir a terra. O Peru era uma terra incógnita, onde por certo nos aguardariam muitas aventuras, pelo menos a contar com as historias de outros cicloturistas que nem sempre eram as mais positivas.
Seguimos pela que é, oficialmente, a Panamericana do pais. O tráfego era escasso e as temperaturas elevadas. O ar seco e o sol impiedoso do meio dia obrigavam a um ciclismo mais preguiçoso. Pedalávamos com os sentidos em alerta, ansiosos por observar as diferenças do pais que acabávamos de entrar, eram bem evidentes!
O Peru è muito mais pobre do que o vizinho Equador e as diferenças sentem-se logo ao atravessar a fronteira. Por breves instantes, os cheiros e o caos das aldeias faziam-me lembrar a Índia.
Na nossa primeira noite de campismo livre no Peru, debaixo de uma grande árvore, num baldio afastados da estrada, a Joana recebeu as boas vindas ao pais através do ferrão de um escorpião, indignado pela invasão do seu território. Garrote e pomada aplicada, seguimos viagem.
Chulucanas
Dias depois chegamos à cidade de Chulucanas, situada entre o final do deserto de Sechura e os "pés" da cordilheira Andina, apenas com uma ideia na cabeça, encontrar um hotel com um bom chuveiro, tomar uma boa refeição e seguir viagem no dia seguinte. À entrada da relativamente limpa e organizada cidade, uma senhora acompanhada por um jovem de moto, questiona-nos por entre o ruído caótico do trafico sobre o nosso destino
- Procuramos um hotel, respondi.
- O meu marido è arqueólogo
- Que buenno, respondi desinteressado, pensado que num pais onde o que não falta são locais arqueológicos seria mais uma farsa para iludir o turista a um hotel indesejável.
- Ele iria gostar de vos conhecer, convido-os a minha casa, insistiu a senhora com uma genuína e sorridente sinceridade. Decidimos seguir a moto pelo labirinto das ruas da cidade, parando em frente a uma casa adjacente a uma escola . Nessa casa semi-construída, em tijolo descoberto, igual a milhares de outras, vivia a família Salazar. Uma das famílias mais hospitaleiras que conheci ao longo dos últimos 18 meses de viagem.
Mário Salazar é um arqueólogo que trabalha para o instituto nacional de cultura na cidade de Chulucanas, e em parceria com a municipalidade, promove o turismo da região. Num pais onde o turismo esta concentrado num eixo Lima-Arequipa- Cuzco-Machu Pichu, o seu trabalho não é nada fácil. Aqui neste canto nordeste da província de Piura chegam poucos turistas. Não há muito que ver.
O Mário recebeu-nos de braços abertos na sua humilde casa. Montamos as tendas no pátio da escola Santa Catarina. Uma escola privada que pertencia à Rosa, esposa do Mário.
Nos 4 dias que se seguiram, o Mário mostrou-nos na sua moto-táxi os atractivos da região. Piura Vieja, a primeira aldeia fundada pelos espanhóis no peru, mas que hoje não são mais do que uns montes de pedra espalhadas ao acaso e guardadas por um senhor a viver num barraco, a queixar-se constantemente do uso das pedras pelos vizinhos para construções de casas e pontes. La Encantada, aldeia de oleiros onde se fabricam pecas artesanais com fortes influencia Moche e rodeada por uns montes de terra, que segundo o Mário eram túmulos de antepassados desse povo pre-Inca, mas que aos meus olhos pareciam apenas lugares de pastagem para cabras.
- Ali, dizia apontando para o vazio de um monte.
- Ali, onde?, perguntava eu.
- Ali, não vês? Aquilo é um túmulo de um feudal Moche!
- haaaa exclamávamos, aparentando estar surpreendidos. Apesar dos passeios turísticos com o Mário na sua moto-táxi serem de uma modéstia e irrelevancia quase cómicas, não lhe podíamos negar o credito, pelo seu esforço em promover o turismo da região e da sua paixão por arqueologia.
La Encantada
Piura Vieja!
O Que o Mário não sabia, era que o ponto alto das nossas visitas era a sua companhia, e a amabilidade da sua esposa e filhos que nos fizeram sentir em casa. As horas passadas à conversa, as brincadeiras com os seus filhos no pátio da escola, a comida cozinhada com tanto carinho e preocupação, haviam transformado a nossa ideia do Peru. Em que outra parte do mundo um arqueólogo transformado em promotor turístico oferece a sua casa, partilha a sua comida, nos passeia na sua moto e comparte as suas experiências de vida sem pedir um único centavo em troca?
Despedimo-nos da família Salazar com sentida tristeza e agradecimento.
Partimos motivados para enfrentar o resto do Peru ansiosos pela nossa nova próxima experiência. Nos dias que se seguiram pela província de Piura a paisagem foi-se alterando lentamente, desde zonas áridas e secas povoadas por pequenas aldeias poeirentas, até se transformar num verdadeiro deserto de dunas junto à costa do pacifico. Uma zona com pouco interesse para ciclismo, mas nao sem os seus encontros fascinantes.
Chiclayo
Chiclayo, a nossa primeira introdução a uma grande cidade Peruana, que à semelhança de Barranquilla na Colômbia, ficou marcada como uma das cidades mais caóticas por onde pedalei nesta viagem. Foi um erro nos nossos planos de viagem. A única razão que pode levar o visitante a incluir a - ironicamente auto-proclamada "ciudad de la amistad"- no seu itinerário, è o fascinante museu Tumbas reales de Sipan, situado 11 km a norte da cidade. No moderno museu está exposta a vasta e fascinante colecção de artefactos do "señor de Sipan", encontrados recentemente num túmulo, 20 km a Este de Chiclayo. Uma espécie de Tutankamon da região. Apesar da estrada seguir para sul ao longo da costa, foi só em Pacasmayo que tivemos as primeiras vistas do Oceano Pacifico. Passamos a noite na agradável cidade-praia, onde somos entrevistados por uma radio local.
Paijan
Saímos de Pacasmayo bem cedo com o intuito de repartir os restantes 90 km até Trujillo em dois dias de viagem. No nosso itinerário estava a aldeia de Paijan. Mais uma entre tantas outras aldeias poeirentas que se encontram ao longo do deserto que a Panamericana atravessa, e que nos foi assinalada no mapa por outros cicloturistas que conhecemos no Equador, como uma zona perigosa e lugar de recentes assaltos a turistas incluindo alguns cicloturistas.
Estávamos decididos a pedalar por Paijan, mas uma brigada da policia á saída da cidade, confirma as nossas preocupações, e convencem-nos a não pedalar por là.
-Ontem 5 turistas foram assaltados á mão armada e desprovidos de todas as suas pertenças, disseram-nos.
Cedemos aos incessaveis conselhos da policia, quando nos apercebemos que não eram dirigidos apenas a nòs turistas, mas sim a todos os motoristas que a brigada ia mandado parar.
-No pare en Paijan, sabe que es una zona roja, cierto?, dizia uma policia a um motorista peruano.
A brigada para um veiculo e "convida" o motorista a dar-nos uma boleia ate Trujillo.
Foi um pouco estranho ver a paisagem do vasto deserto de dunas a passar tão rápido diante dos meus olhos. Excluindo algumas viagens de barco (La Paz-Mazatlan no México e a travessia do Panamá para a Colômbia) era a primeira vez, desde um pequeno troço na "Cassiar highway" no Canadá, que eu e a minha burra viajávamos para sul num transporte motorizado.
Trujillo
- Bienvenidos a mi casa, es un plazer terlo aqui, disse aquele homem de pele escura, ar cansado, olhar sincero e voz afável. Notava-se a sinceridade nas suas afirmações.
- Poden ficar lo tiempo que desejen, continuou afirmando que éramos os primeiros Portugueses que acolhia na sua vasta e impressionante lista de cicloturistas que vem recebendo ao longo dos anos.
A primeira vez que ouvi falar do "Lucho" foi na Califórnia há mais de um ano atrás, quando um outro cicloturista me fez referencia à "casa de la amistad" em Trujillo. Desde então outros cicloturistas tem falado acerca dessa referencia emblemática no Peru. O Lucho já acolheu perto de 1000 cicloturistas de todo o mundo nos últimos 20 anos. Um reflexo da sua infindável hospitalidade pode ser observada nos registos dos vários livros de visitas com comentários e fotos de outros ciclonautas, ou através dos inúmeros livros de cicloturismo publicados nas mais diversas línguas e autografados pelos autores, que preenchem a estante do simples quarto onde nos alojou. Entre muitos, um livro de Heinz Stucke , o carismático e mítico ciclonauta alemão que já pedala pelas estradas deste planeta há mais de 40 anos consecutivos.
A nossa suposta estadia de vários dias prolongasse por quase 3 semanas. Era o local ideal para esperar que as chuvas torrenciais que se faziam sentir nas montanhas,
diminuíssem.
Os jornais do pais publicitavam sistematicamente os estragos causados pelas fortes chuvas, atribuídas este ano ao fenómeno "La Niña". Era tudo um pouco difícil de acreditar quando em Trujillo estava um calor e sol abrasador. Os dias foram fluindo por entre patuscadas na "vasa de la amistad", serões de musicais (a segunda paixão do Lucho depois de ciclismo), visitas aos lugares arqueológicos da região, como Chan Chan.
Chan Chan foi em tempos a maior cidade de barro do mundo e capital do império Chimu, anterior aos Incas. Quando o calor seco impedia a imaginação de contemplar esses vestígios do grande passado Peruano, fugíamos para a praia de Huanchaco, onde à sombra dos "cabalitos de Totora" (barcos tradicionais de palha), tínhamos uma interpretação mais contemporânea da adoração ao sol.
Trujillo situa-se na costa norte do pais, e è uma das varias cidades-oásis que dão vida ao que seria, de outra forma, um vasto deserto que acompanha toda a costa do Pacifico do país, desde a fronteira do Equador até bem para dentro do norte chileno.
Chegou a hora de partir. Com ou sem chuva iríamos pedalar rumo às montanhas.
A próxima etapa: Pedalar por mais uns dias pelo deserto de Sechura e depois subir à Cordillera Blanca seguindo o rio Santa até Huaraz. Se o tempo estiver do nosso lado, poderá ser uma etapa fantástica atravessando desertos, desfiladeiros e ravinas, e pedalar ao lado de cumes brancos com mais de 6000m de altitude. Caso o tempo não nos ajude, pode ser uma etapa miserável, chuvosa, fria e sem vistas algumas.
Despedimo-nos deste oásis de cor plantado à beira do Pacifico e seguimos viagem pela Panamericana através do deserto de Sechura.
Nos próximos dias seguem-se os relatos dessa etapa.
Nuno Brilhante Pedrosa
Em Ayacucho, Peru.
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