2.29.2008

Trocal Amazónica (Equador)



Com mais de 10 mil quilómetros ainda para percorrer e com a janela climática a fechar-se, o inverno austral era algo que já me preocupava há vários meses. Nas últimas semanas tenho viajado a médias de 30/40 km/dia e chegar a Ushuaia antes das primeiras neves e temperaturas negativas estava a tornar-se numa missão quase impossível.

Tinha que tomar uma decisão: ou separar-me da Joana e avançar pedal a fundo pela rota mais curta possível e com poucas paragens, ou adiar a chegada à terra do fogo para depois do inverno austral. Faço vários telefonemas para me assegurar de que seria possível financeiramente viajar por 6 meses adicionais. Telefono também aos meus pais. "Mais uma vez vou adiar a minha chegada. Só chegarei lá para o Outono, ou talvez antes do Natal. Ainda não sei". Ficaram apreensivos.

Numa aventura desta envergadura, não pode haver compromisso com o tempo. A sensação de estar "preso" a ele é um paradoxo que remove os prazeres de cicloturismo. Pela primeira vez em vários meses sentia-me de novo completamente livre. Mas apesar de já não haver pressa, e de estar a gostar da cidade, começava a sentir comichão nos pés. Cuenca oferecia demasiados "confortos" ocidentais e sentia a necessidade de explorar um pouco mais o verdadeiro Equador fora dos roteiros turísticos.

O plano era simples: A Joana tinha que esperar em Cuenca pelos seus novos cartões do banco, que tinha cancelado quando os perdeu num táxi (e voltou a reencontrar) à sua chegada ao Quito, semanas atrás. Eu seguia viagem até à cidade de Loja (200 km para sul), onde me reencontraria com ela mais tarde.


"Vemo-nos dentro de 5 dias", disse-lhe, sentindo o seu corpo num forte abraço. Na noite anterior no quarto do "hogar Cuencano" tinha-lhe mostrado o mapa e dito como iria ser uma etapa fácil. A estrada aparentemente seguia o rio de um vale passando por Paute, Sevilla D`oro e Amaluza antes de descer os Andes orientais e entrar na selva amazónica do Equador.

O mapa indicava uma interrupção de 40 km na estrada entre Amaluza e Mendez, mas a dona do hostal garantiu-me que ela existia. O mapa indicava também uma forte depressão entre a cordilheira oriental e a cordilheira del Condor por onde a estrada seguia para sul até Zamora.Uma vez em Zamora iniciaria a subida de regresso aos Andes e à cidade de Loja.

Um desvio de 360 kms em 5 dias por estradas relativamente planas.Pelo menos era essa a ideia que eu tinha do amazonas. O facto de poder conhecer um pouco do "Oriente", o amazonas equatoriano e a cultura dos indígenas Shuar, atraía-me imenso. Em especial depois de visitar o fantástico museu de Pumapungo em Cuenca, que retrata a fascinante cultura desse povo. O que eu ainda não sabia, era que tinha pela frente não só a etapa mais difícil do Equador, mas sim desde que pisei solo sul-americano com a minha fiel burra.

Saio de Cuenca já tarde. Eram 11 da manha. Sigo pela panamericana 15 km para norte até ao cruzamento para Paute. A estrada alcatroada até Paute era de facto, relativamente plana, o trânsito intenso e a paisagens desinteressante.Paute é a última cidade entre Cuenca e Mendez com uma vasta variedade de mantimentos. Depois de Paute a estrada apesar de boa, começa a alterar entre alcatrão e saibro, em especial junto a linhas de água. As chamadas "zonas geologicamente instáveis" tão comuns nos Andes,onde por vezes depois de fortes chuvadas e pedaços de estrada, simplesmente desaparecem.

Depois de uma semana parado em Cuenca,sentia-me feliz por estar de novo na estrada, sentir a montada. Sentia a burra como um prolongamento do meu corpo. Juntos deslizávamos encosta acima encosta abaixo, por uma estrada que, ao longe, parecia ser uma corda lançada ao acaso sobre a encosta da montanha. O vale assinalado no mapa sempre existia, mas não era mais do que um desfiladeiro escavado na terra durante milhões de anos, desde os cumes da cordilheira até às terras baixas do amazonas com cerca de 100 km de extensão, cada vez mais estreito e profundo com o descer das montanhas.





Em ambas encostas pequenas fazendas em adobe e telha romana rodeadas de árvores de cacau e bananeiras davam uma atmosfera colonial à paisagem. Animais domésticos passeiam por todo o lado. Obstróem a estrada alheios ao trânsito como se a ela tivessem direito. Cães demarcam o seu território perseguindo a bicicleta, ladrando ferozmente. Algo a que já estou habituado, mas nesta estrada eram particularmente agressivos, o que me obrigava a andar com pedras na mala do guiador.

Ao final da tarde procuro um lugar para acampar. Encontrar 15m2 de terreno para montar a casa, normalmente não é um problema, mas o relevo era tão inclinado que depois de pedalar já pela noite dentro em busca de um lugar, desisto e monto a rede entre duas árvores. A "henessy hammock" tem sido uma das peças de equipamento que mais valorizo, permitindo-me uma noite de sono confortável e abrigo, mesmo nas situacoes mais difíceis.

No dia seguinte dou inicio à descida dos andes para a selva amazónica. Começar o dia a 2470m de altitude e terminar a 590m, poderia-se pensar que seria um dia de downhill fácil. Na verdade foi um dia bastante duro. O relevo era tão "enrugado" que acumulei 1690 metros de altitude, apesar de ter descido mais de 2000m.


A paisagens eram do mais exótico e luxuriante dos últimos tempos. A cordilheira oriental, ao contrário da cordilheira do pacífico, é bastante verde, com florestas húmidas e nublosas e inúmeras cascatas. Na verdade, nesse dia, julgo ter visto mais cascatas por km pedalado do que em qualquer outra parte nesta viagem. Seguramente que se o explorador alemão Alexander Von Humbolot tivesse passado por aqui durante as suas expedições dos andes, teria intitulado esta estrada como a "avenida das cascatas".



Ao final do dia chego a Mendez, uma pequena cidade perdida no meio da selva, quente e húmida, com casas construídas em madeira e habitantes simpáticos de descendência Shuar. Mendes não tem infraestruturas turísticas, é apenas um entroncamento entre os Andes e a selva Amazónica. Esta parte do Equador é das menos visitadas do país, e um turista (em especial em duas rodas) é sempre uma novidade.

Um dos residentes, Samuel, convida-me para um refresco em sua casa e apresenta-me à sua família. "A estrada boa termina aqui", disse continuando, " daqui para sul a estrada está muito má. Há muitas obras e cortes na estrada, mas de bicicleta não vais ter problemas". Se esta era a estrada boa, como seria a má? E cortes na estrada? O que é que ele queria dizer com isso? Na manhã seguinte, aliás, nos 3 dias seguintes, para meu horror, iria presenciar bem de perto ao que o Samuel se estava a referir.



O troncal amazónico, como é conhecida a estrada, bordeia os "pés" dos Andes orientais desde a fronteira colombiana até à cidade de Zamora. Uma artéria exterior do maior pulmão do planeta. Para oeste a quase impenetrável selva amazónica. Depois de Mendes, o troncal do amazonas penetra por dentro da densa vegetação, camuflada no verde intenso, com vários troços de estrada construída de pedra polida pelo tempo recolhida dos rios que a atravessam, sem fazer muito esforço para contornar montes criando inclinações cruéis. Um pesadelo para qualquer cicloturista carregado, mas a única forma económica de manter a estrada transitável o ano todo.

A estrada enlameada e "esbarradiça" obrigava-me a fazer downhills tão lentos como as subidas, em parte devido aos pneus completamente carecas com que viajo. Ambos Shwalbe Marathon plus. O traseiro colocado no Yucatan (México) e já com 12.848km rodados, e o da frente, uma autêntica relíquia de equipamento, já roda nas estradas do continente desde Smithers (Canada) há uns impressionantes 24.253 kms.

Apesar dos pneus aparentarem ser mais adequados 'para "bike-boarding" do que para cicloturismo em estradas molhadas de calhau rolado, nos últimos 12.000 kms tive apenas um furo na estrada (mais 2 de válvula e um de remendo descolado), o que não me deixa dúvidas de que são os melhores pneus no mercado para cicloturismo.

Foram 3 dias duríssimos para percorrer os cerca de 150 kms até à cidade de Gualaquiza onde inicia de novo o alcatrão, com médias de 6 e 7km/h, estradas cortadas por avalanches de terra, árvores caídas, áreas com lama onde tive que empurrar a burra e várias zonas de construção que implicavam horas de espera e que estão lentamente a transformar o troncal amazónico numa "super via" na selva.








Pelo menos é esse o objectivo do governo Equatoriano que pretende criar infraestruturas para a exploração petrolífera. Vastas quantidades de ouro preto foram encontradas recentemente na região, em especial no subsolo do parque nacional de Limoncocha. Depois de 3 dias de "ciclo-tortura", a chegada a Gualaquiza e ao alcatrão foi recebida com forte entusiasmo, foi como se pusera a burra num tapete voador.

Dias depois chego a Zamora onde recebo notícias da Joana que ainda estava em Cuenca à espera dos seus cartões , decido tirar um dia livre para visitar o parque nacional Podocarpus, recem aclamado património da humanidade pela UNESCO. Uma vista interessante em particular pela enorme quantidade de aves e borboletas.




No dia seguinte dou início ao regresso à cordilheira Andina. A estrada sobe sem interrupção até aos 2800m, seguindo-se um downhill de 700m até a cidade de Loja, a última grande cidade no sul da cordilheira. A Joana chegou uma semana depois...e ainda sem cartões,(a saga dos seus cartões do banco perdidos há 3 semanas no labirinto dos correios Reais Ingleses não é digna de ser relatada).

Apesar de ainda estarmos a mais de 200 km da fronteira do Peru, as próximas pedaladas iriam definir todo o nosso itinerário do norte do peru. Ou seguíamos directamente para sul passando por Vilcabanba e Zumba usando a fronteira mais remota entre os dois países e entrando no peru pelos Andes orientais, por estradas em saibro e clima adverso, ou seguíamos para sudoeste usando a calma e tranquila fronteira de Macara entrando no Peru pela seca e plana província de Piura e posteriormente pelo deserto costeiro de Sechura. Optamos pela segunda. A principal razão:o rigor dos elementos.
Os Andes peruanos atravessam de momento o período mais intenso de chuvas do ano, e muitas estradas estão intransitáveis. A costa desértica irá oferecer um ciclismo mais fácil, plano e seco.

Ao final do dia, perto de San Pedro la Bendita, metemo-nos por um caminho de terra batida que desce um estreito vale e termina em frente de uma simples casa de cimento sem electricidade. Pedimos aos donos para que nos permitissem acampar algures nas suas terras. A notar pela quantidade de pintas vermelhas nas caras das crianças, havia uma epidemia de sarampo na família, o que não nos incomodou.
O senhor Torres, corcunda, de sorriso contagiante e com ar de intrigado e surpreendido pela súbita intrusão de 2 ciclonautas na sua vida rotineira, mostra-nos um pedaço de terra junto ao curral do porco.

Não nos queixamos. De facto parecia ser o local mais adequado com terra plana e protegidos pela casa. "Podem dejar las motos ahya, no pasa nada", disse. Apesar de eu insistir de que se tratavam de bicicletas, julgo que no dia seguinte saímos sem que eu o convencesse de que não havia "motor" nas bicicletas. Cozinhamos no quintal à luz de vela sobre um céu escuro e carregado, na companhia das crianças, fascinadas com a nossa presença.

A incerteza do desconhecido deve ser uma das cenas mais fascinantes e motivadoras de cicloturismo. Muitas vezes durante o dia tento imaginar onde irá ser o lugar de eleição para passar essa noite. Num hotel barulhento? Com uma calorosa família? Na tenda à beira da estrada numa noite de frio e chuva? Na rede debaixo de duas árvores? Ou junto a um lago com vista para os andes?
A falta de conforto e da segurança da rotina estimulam outros sentidos e obrigam-me a ver e sentir o que me rodeia numa forma mais lúcida, mais presente.







Acordamos com o som do porco a remexer na lama a poucos metros da tenda. Despedimo-nos da família Torres, pegamos nas nossas "motos" e seguimos viagem. Choveu durante todo o dia. Apesar de estar a adorar pedalar no Equador, já começamos a antecipar a travessia de fronteira para o Peru. O mau tempo que se faz sentir já há varias semanas começa a desmoralizar e começamos a antecipar as próximas pedaladas pelo deserto quente e seco do norte do peru.

Ao meio dia paramos junto à estrada para comer algo e dormir uma sesta. Avistamos um outro cicloturista que se aproxima lentamente. Era o Jeff, que tinha pedalado desde loja até ali (200 kms) em menos de dia e meio,com o objectivo de nos alcançar. Foi um prazer voltar a ver-lo.
O Jeff saiu de Inuvik (Canada) 2 dias depois de mim, conhecemo-nos pela primeira vez no México e voltamos a encontrar-nos meses depois na Guatemala. Viajamos juntos até Granada na Nicarágua. Não o voltei a ver desde então.


Macarà é uma cidade fronteiriça feia, com uma atmosfera tipo faroeste, de prostituição, casas de jogo e delinquência. A fronteira do Peru fica apenas a poucos km a sul. Amanhã iremos enfrentar juntos o que é considerado por muitos cicloturistas como o país mais "difícil" da América latina, segundo alguns dos comentários que ouvimos de outros ciclonautas que temos conhecido e que viajam no sentido inverso ao nosso e que tem partilhado as suas experiências connosco. Mas de facto, do outro lado da fronteira, na nossa próxima etapa pelo deserto até Trujillo, esperavam-nos várias surpresas agradáveis.

Nuno Brilhante Pedrosa
Em Trujillo, Peru.