Sem desviar a atenção dos buracos da estrada, observo através da vegetação que servia de vedação a uma casa moderna construída em blocos de cimento por pintar, à matança do porco. Em frente à porta da casa estava um homem feito de palha com uma máscara no rosto. Alguém com uma faca abria o animal deitado numa mesa e extraía-lhe as entranhas. Ouço o gritar de crianças, música, risadas e conversas de palavras soltas.
Procurava uma padaria nesta aldeia de 20 ou 30 casas espalhadas ao acaso pela estrada e encosta da montanha. A Joana tinha ficado à beira do riacho que atravessa a entrada da aldeia, a preparar o picnic na companhia de duas crianças curiosas. Uma senhora afasta-se do grupo e aproxima-se da estrada.
"Para onde va?", perguntou.
"Por ahya, à la iglesia", respondi olhando vagamente para a capela rodeada de algumas casas que se avistava no cimo da subida, e que me parecia ser o centro da aldeia.
"Usted es de Londres?".
"No, de Portugal, pero si vivi en Londres".
"Conoce a Torres?"
"Torres? porsupuesto!" exclamei surpreendido.
"Hey, es elle, es elle, gritou a senhora voltando-se para o grupo de pessoas em redor do porco.
"Lo estavamos esperando. Adelante, siga no mas"
18 meses antes no bar do restaurante "Le Caprice" em Londres, o meu colega de trabalho, depois de muitos copos de champanhe em jeito de despedida, desenhou-me numa folha de papel o mapa do Equador, onde detalhava a Panamericana entre Alausi e Cuenca. "Tens que visitar a minha família no Equador. Serás bem recebido". Esse mapa viajou nos alforges da burra até hoje.
"Quando chegares a La Moya, pergunta pela família Torres. Todos conhecem"
Não foi preciso.
"Chancho", leitão, e peru assado no forno, servido com "Mote" (milho branco cozido a vapor), e pão feito em forno de lenha, eram alguns dos ingredientes principais que Anita Gullien estava a preparar para a noite de final de ano. Família do Quito estava presente e antecipava-se uma grande festa. Todo o casario de La Moya (que nem vinha assinalado no meu mapa) estava também em festa.
E festa por estas bandas não é celebrada sem alguma "herencia" espanhola, a corrida de touros, misturada com influências locais, o consumo de enormes quantidades de "Canela". Aguardente de cana de açúcar misturada com água quente, sumo de lima e açúcar.
Essa tarde na arena da aldeia, algumas vacas magras eram desorientadas pelos muitos "toureiros" que se tornavam mais corajosos com o fluir das "canelas". Num palco a um canto da arena, protegidos pela intensa neblina que acentava na encosta do vale, uma banda "en vivo" de trompetes e guitarras entretinham as multidões com o som (repetitivo) da musica tradicional Equatoriana.
Depois da nossa inóspita noite de natal onde fomos obrigados a acampar à beira de um caminho ao final de um dia frustrante a subir uma árdua montanha em busca do lago idílico de Colta (via Punin e Tselaron) que imaginávamos estar sempre depois da "próxima curva", e onde depois de montar acampamento fomos acusados por um indígena local embriagado, de ladrões e ameaçados de ter a tenda incendeada durante a noite, esta corrida de touros não era como a de Pamplona, era melhor!
Foi uma noite de natal "diferente". Como consolo tivemos uma excelente garrafa de vinho chileno e o conforto de saber que com a humidade do nevoeiro que se fazia sentir, o velho zarolho e bêbado, não só não iria conseguir incendear a tenda, não iria dar com ela!
Mais tarde, no outro lado do enorme vale, por detrás da cordilheira a lua cheia eleva-se iluminando o vale a afastando a neblina.
Natal não se resume a presentes e luxúrias. Como alguém uma vez me disse, "o importante é lembramo-nos uns dos outros". E ali estava a lua cheia, algo que podemos partilhar com o mundo inteiro.
Na manhã seguinte seguimos viagem terminando o dia em Palmira.
Uma pequena aldeia 20 km a norte de Alausi. O sacristão da aldeia ofereceu-nos uma divisão vazia do convento de San Juan evangelista, onde introduzimos as bicicletas e dormimos no chão. Partilhamos o edifício em desuso com uma extensa família Equatoriana que nos acolheu com o verdadeiro espírito de natal.
Foi o nosso presente.
A tourada termina e regressamos a casa. Pelo caminho viam-se algumas casas modernas em cimento que contrastavam fortemente com as simples casas de madeira com telhado em telha ibérica.
"Pertencem a emigrantes em Londres", conta-nos o Júlio.
O Equador, assim com o México, El Salvador e muitos outros países da América latina, é um país de fortes tradições migratórias. A maioria para os Estados Unidos e Espanha, mas em La Moya parecem ter ido todos para Londres. O Júlio tem lá 3 irmãos e a sua irmã Anita, 5 filhos.
O Henrique ( que iríamos conhecer dias depois) conta-nos como o Luís Torres foi a primeira pessoa da aldeia a chegar a Londres, depois de muitas peripécias. Depois foram os irmãos, sobrinhos e amigos. Hoje em dia, não há um residente de La Moya, que não tenha um familiar ou um vizinho a viver em Londres. A família torres é uma historia de sucesso. Mas nem todos têm a mesma sorte.
Enquanto eu vou pedalando Andes acima, ou tu a ler estas linhas em frente ao computador em Portugal, Brasil, ou noutra parte da "aldeia global", não há uma semana que não passe sem a notícia de uma trágica história de um barco cheio de emigrantes clandestinos naufragado no mar pacífico ou o camião-cisterna de algum coyotero (traficante humano) cheio de pessoas a viajar em condições sub-humanas a ser apanhado no deserto do Arizona ou no norte do México.
Muitos estavam na fase final da sua árdua e longa viagem pelo continente americano em busca da "land of freedom". Na lista: sempre um ou outro equatoriano. Histórias que me tem acompanhado ao longo da viagem no continente americano.
É noite de ano novo e o leitão que esteve a marinar durante a noite passou várias horas a assar no forno a lenha e está pronto para ser consumido. Nesta atmosfera simples e saudável do campo equatoriano, um turista da Europa do norte poderia estar a ter uma forte experiência, mesmo um choque cultural. Para mim e a Joana foi como uma viagem à nossa infância. Era tudo muito familiar. O leitão assado, o forno a lenha a um canto e a lareira a outro, pão quente com manteiga, e uma calorosa família onde os traços familiares são preservados a rigor.
Dançávamos em frente à casa junto à estrada. Todos participavam. O som alto da música típica andina atraía alguma vizinhança que se juntava à festa. A Anita mantinha os ânimos altos com as suas inúmeras rodadas de "canela" servidas de um jarro de plástico para um único copo que circulava entre todos. A contagem decrescente era anunciada por mim através do computador da bicicleta.
À meia noite pára a música, trocam-se abraços solidários e le-se o "testamento" deixado pelo "año viejo". O ano velho era o fantoche de palha que vi à minha chegada em frente à casa e que iria ser queimado a seguir, símbolo de todos os acontecimentos do ano que termina. O seu testamento, uma paródia acerca da vida de cada membro da família, que não excluiu os ciclistas visitantes. O fantoche é queimado no meio da estrada alheio ao trânsito que se tem que desviar. Apenas mais um dos milhares de fantoches queimados nas estradas equatorianas essa noite. Às 2 da manhã fomos todos na carrinha do Júlio,ao bailarico da aldeia. Uma atmosfera surreal onde não faltou muita "canela" e dança até as 5 da manhã.
No dia seguinte, meio ressacados, despedimo-nos das famílias Torres e Gullien e seguimos viagem.
Tínhamos um plano bastante ambicioso de fazer um dia "normal" de ciclismo, mas havia mais surpresas pelo caminho. Tínhamos feito apenas 4.5 km quando passamos pelo casario de Zunar. Uma jovem rapariga aproxima-se e diz:" La patrona los esta invitando a parar". Troco olhares com a Joana. Ser convidado a parar e entrar na casa de alguém é algum relativamente comum em cicloturismo na América Latina, mas tínhamos feito apenas 4.5 km e queríamos continuar. "No gracias, que nos desculpe pero tenemos que seguir viajen".
Momentos depois uma senhora de meia idade corre ao nosso lado gritando ofegante:"Pare por favor, soy hermana do Torres" Irmã do Torres, pensei, quantos familiares terá ele espalhados por este vale? Paramos para um pouco de conversa e um copo de cerveja. Era apenas meio dia. Já não partimos.
Tinha acabado de fazer o dia mais curto de toda a viagem. A este ritmo quando irei chegar à Patagónia? Natal de 2008?
O Henrique indica-nos o local onde deveríamos guardar as bicicletas, no galinheiro da casa. Mas não era um galinheiro qualquer, como viríamos a saber mais tarde. Mais de 20 galos de raça em compartimentos separados, protestavam a intrusão das bicicletas, alguns com marcas de lutas recentes. Mais tarde o Henrique mostrou-nos orgulhoso a sua colecção de troféus ganhos nesse desporto cruel ainda comum no equador. Mais uma vez fomos tratados nas "palminhas" pela família torres.
Na manhã seguinte partimos finalmente dispostos a fazer algum ciclismo. Chuvas e fortes neblinas que se prolongavam por várias horas do dia juntam-se às dificuldades do relevo das montanhas e desníveis constantes das estradas.
Foram ainda mais 5 dias de viagem para percorrer os 160 km até Cuenca, com uma paragem em Cañar, cidade com um número invulgar de escritórios de advogados onde visitamos as ruínas Incas de Ingapirca situada 15 km a Este da cidade.
Chegamos finalmente à cidade de Santa Ana dos 4 rios de Cuenca, um dos maiores centros urbanos do sul do país e parte do património mundial da UNESCO, mesmo a tempo de assistir às celebrações do "dia de los inocentes". Desfiles de rua com muita música e cor. Uma espécie de festival híbrido entre Carnaval e o "halloween" Americano.
Cuenca apresenta um vasto mosaico humano onde se pode presenciar a alquimia da mestiçagem, e é (por boas razoes) também uma cidade turística. Alguns deles vêm e já não partem. Um reflexo dessa comunidade estrangeira residente são os muitos restaurantes de gastronomia internacional. É um bom lugar para uma pessoa se distrair das realidades do campo Equatoriano e se deixar ensopar por certos confortos ocidentais.
Alojamo-nos num bairro com alguma presença da comunidade estrangeira, onde conhece-mos alguns deles. Entre eles um ciclista coreano a pedalar há 2 anos e a metade da sua ambiciosa volta ao mundo em bicicleta. Conhecemos também o Guilermo . Um francês da Normandia a fazer trabalho voluntário em Cuenca. Uma tendência cada vez mais comum. São os viajantes que viajam menos e conhecem mais, através do voluntariado. Em vez de viajar extensamente com a mochila às costas, radicam-se num lugar e usam as suas habilidades profissionais com as comunidades locais. Férias, portanto, a trabalhar sem vencimentos. Uma das melhores formas de inter-ligação com as comunidades locais.
O Guilermo é voluntário num projecto da Ordem de Malta Francesa, que ajuda entre outras coisas, a integração de crianças especiais na plataforma da educação. Convida-me a visitar o centro onde me mostra o seu trabalho: Fazer apoios para próteses articuladas para crianças especiais. Uma prótese comprada a uma empresa estrangeira custa cerca de 2.500 dólares. O Guilermo fá-la por apenas 20 a 30 dólares, o custo do material. Apresenta-me ao Dr Francisco Ochoa, responsável pelo projecto, que me mostra as instalações do dispensário e com quem troco impressões, deixando alguma informação da APPC-Leiria.
Uma semana em Cuenca e já estava a começar a sentir comichão nos pés. Apesar de ser uma cidade interessante, tinha vontade de sentir a montada de novo. Os cartões do banco da Joana (perdidos no Quito) nunca mais chegavam (a razão da nossa prolongada estadia na cidade), então, decidimos optar pelo "plano B".
Eu seguia na minha burra até à cidade de Loja, via Mendes e Zamora, aproveitando para conhecer um pouco do oriente do país. O amazonas Equatoriano. A Joana iria ter comigo a Loja de autocarro dentro de 4 ou 5 dias. Simples. O que eu ainda não sabia é que pela frente iria ter a etapa mais difícil desde que pisei solo sul-americano. Os relatos dessa etapa seguir-se-ão em breve.
Nuno Brilhante
Em Loja, Equador.
1.23.2008
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