10.31.2007
Do mar das caraíbas à cordilheira Andina (Colômbia)
Guerrilhas e narcotráfico, Pablo Escobar e as FARC, O "Gabo" e o cafè, a violência e sequestros, e mais recentemente a Shakira, são provavelmente os melhores "export" Colombianos. Mas por detrás desta imagem impingida ao mundo pelos media existe um país com uma riqueza humana e biodiversidade incomparável na América Latina.
É verdade que zonas problemáticas existem, mas desde que sejam excluídas do itinerário, os poucos afortunados que visitam o país, por vezes questionam o porquê de todas essas "headlines", quando viajar no país é simplesmente tão.....normal!
A jornada à cidade perdida, apesar de bonita, foi também dura. A Verónica queixava-se de dores num joelho e decidimos passar 2 dias a descansar no Parque Nacional Tayrona, que ficava apenas a um dia de pedalada de Santa Marta. O parque é um outro oásis de paz neste turbulento país. É também um dos mais visitados em toda a Colômbia e por boas razões. Abrange uma área de 15.000 hectares de selva costeira, praias e baías de paisagens idílicas.
Devido ao seu estatuto de área protegida, o desenvolvimento e presença humana limita-se ao turismo controlado e a alguns pescadores e indígenas Kogui que por ali vivem. O acesso ao muitas das praias como Arrecifes e Cabo de San Juan, é apenas possível a pé ou a cavalo, e o alojamento nessas baías limita-se a dormitórios em redes, campismo o algumas cabanas ecológicas. Julgo que já não visitava um parque nacional tão bem organizado e gerido desde Belize ou até mesmo dos Estados Unidos.
Infelizmente nem todos os parques naturais da Colômbia são administrados desta forma, e o parque nacional Tayrona é mais a excepção do que a regra. Os cultivadores de Coca muitas vezes usam os parques naturais para cultivarem a planta, tirando vantagem das localizações remotas e do estatuto de reserva natural que lhes garante que os seus cultivos não irão ser destruídos com a pulverização aérea de químicos. Um método usado noutras partes do país através do chamado "Plan Colombia" financiado pelos EUA.
As águas transparentes das caraíbas e a sombra dos coqueiros convidava a passar por ali vários dias, mas a menos de uma semana do regresso da Verónica a Espanha, tínhamos que continuar.
Em apenas 2 dias de pedalada, a estrada costeira levou-nos deste as montanhas do litoral caribenho de floresta luxuriante e verde, a quase ao oposto. As florestas e áreas de cultivo começaram lentamente a dar lugar a acácias e cactos. Estávamos a entrar nas planícies áridas da península de La Guarija. As diferenças de paisagem em tão curto espaço de tempo eram surpreendentes. A estrada absolutamente plana cortava pela paisagem árida e quente. O amplo azul do céu preenchia o ar e abraçava a terra, em todas as direcções, com uma veemência sofucante acrescida pelo calor abrasador.
Mas aqui, nesta zona inóspita do norte da Colômbia, habitada pelos indígenas Wayuù, também chove durante um curto período do ano. Nesta altura do ano, vastas zonas de planície seca dão lugar a zonas pantanosas de cactos e acácias submergidos, e algo de estranho acontece. O deserto inundado pelas chuvas abre passagem aos peixes que "fogem" dos rios, do mar e das "cienagas" e os indígenas Wayuù aproveitam para lançar as redes ao deserto inundado.
Rioacha, a capital da província de La Guajira, foi o final de viagem para a Verónica. Não foi um final feliz. Ambos sofremos de um desarranjo intestinal com algo que comemos (julgo que com uma sopa indígena de chibo, oferecida por uma simpática senhora Wayuù, na aldeia de Mayapo, algures na costa desértica).
Seja qual fora a razão, passei 3 ou 4 dias com diarreia, vómitos e em recuperação, seguidos de mais 3 ou 4 dias a tentar combater a preguiça de pedalar que se tinha apoderado de mim.
Mas antes desses dias solitários de convalescença, regresso a Cartagena com a Verónica percorrendo de autocarro os cerca de 500 km que pedalamos ao longo da costa. Levo-a ao aeroporto e regresso a Rioacha e à companhia da minha burra e do meu desconforto estomacal.
Voltou-se a repetir aquele sentimento nostálgico de separação de mais uma excelente companheira de viagem na Panamericana. Ao longo dos meses, encontros com outros ciclistas e amigos tem sortido um efeito energético e um preenchimento de alma inquestionável. Sem eles, provavelmente não aguentaria os quase dois anos que irá durar esta viagem solitária.
Não sei bem explicar porque passei uma semana nesta cidade-praia desinteressante. Planeava seguir pelo deserto até ao Cabo de la Vela, na ponta norte da península, e passar mais uns dias a pedalar por aldeias de indígenas Wayuù, tentando conhecer um pouco mais acerca da sua cultura.
Mas mudei de planos!
Já chega de praias, calor desconfortável e estradas planas, de mosquitos e de pás de ventoínhas barulhentas dos hotéis. Está na altura de me dirigir para as montanhas.
Levanto-me o sol ainda não tinha nascido (coisa rara!), tomo o pequeno-almoço e às 5.45 estava na estrada. Dirijo-me à marginal da cidade e despeço-me prolongadamente do Atlântico. Não o iria voltar a ver até chegar a Portugal. Dou meia volta e começo a pedalar directamente para sul. Destino: Andes!
Estava na altura de enfrentar o gigante...
Lancei um desafio a mim mesmo de chegar às montanhas em 5 dias.
Ao seguir a costa desde o local onde desembarquei na Colômbia até aqui na La Guarija, tinha-me afastado da Panamericana cerca de 800 km. Agora, pedalava directamente para sul, acompanhando a fronteira da Venezuela - a cerca de 80 km dali - e a cordilheira oriental, ambas ao meu lado esquerdo. Para oeste, as vastas planícies do norte colombiano. A estrada era plana e monótona, atravessando zonas agrícolas e pequenas aldeias e cidades rurais. Ligo o MP3, cabeça baixa, pé no pedal e toca a somar quilómetros.
Nos 5 dias entre Rioacha e Bucaramanga, ou seja, entre a costa e as montanhas, somei mais de 650 km. Fazendo no primeiro dia 139 km, seguidos de 146 km, 141 km, 136 km e no quinto dia - já nas montanhas - apenas 90 km mas com um desnível acumulado de 2042 metros.
Mas a monotonia da pedalada é sempre quebrada com encontros inesperados. É esse um dos grandes prazeres de viajar, em especial em duas rodas.
Durante toda a viagem, sempre fui confrontado (com ocorrência diária) por outros ciclistas, motoristas e motociclistas, que me acompanham durante breves momentos, não só curiosos em saber de donde venho e para onde vou,mas principalmente intrigados com as razões que me levam a enfrentar situações climáticas e de relevo adversas com o esforço das minhas pernas. Porquê pedalar à chuva e ao sol? Porquê subir montanhas? E porque em bicicleta e não de mota ou de carro?
Na Colômbia rural, onde praticamente não existe turismo, muito menos em duas rodas, um ciclo-turista numa bicicleta carregada, é objecto de maior curiosidade, olhares incrédulos de incompreensão. Mais do que em qualquer outro país da pan-Americana que visitei. Alguns falam-me que é um modo de viajar audacioso, ecológico, saudável ou enriquecedor, mas a maioria julgo que pensa que é apenas falta de siso ou mesmo lunatismo.
Entro na cidade de Pailitas e um jovem de motorizada acompanha-me fazendo as já habituais perguntas: "de donde venho e para onde vou?". Normalmente digo que
venho da última cidade importante que passei ( Santa Marta ou Rioacha) e que vou para a próxima cidade significante (tipo Bucaramanga ou Bogotá). Isso, por si só, já é um feito enorme, e não é necessário dizer que venho de mais longe. Mas a persistência deste motociclista leva-me a mencionar o Canada e a Argentina.
O motociclista desacelera e troca impressões com outro companheiro motociclista que por sua vez acelera e questiona-me com as mesmas perguntas. A sequência repetiu-se várias vezes, com outros motociclistas curiosos. Quando dou por mim, estava a pedalar pelo centro da cidade, rodeado com 10 ou 12 motociclistas, bloqueando a estrada, e seguidos por uma fila de carros e autocarros. Um dos motociclistas começa a apitar e os outros seguem-lhe o exemplo. A bicha de carros também, mas como eu viria a descobrir dentro de momentos, era mais por irritação pela via obstruída.
A Colômbia está agora em campanha eleitoral, e por momentos, confuso com a situação, pensei que talvez se aproximasse algum comício eleitoral ambulante. Questionei um motociclista porque apitavam:
-São as eleições?, perguntei.
-Não, é por ti, respondeu.
- Mas porquê?
-Porque é divertido, retorquiu.
Aperto a minha "trompete" enferrujada e junto-me à festa.
O "desfile" chegou ao fim no "reten" militar à saída da cidade. Postos de controlo militar são bastantes comuns por toda a Colômbia, em especial nas estradas principais, e apesar deles inspirarem segurança, a maior parte das vezes que passo por eles, os militares parecem estar mais entretidos na conversa debaixo da sombra de uma árvore do que no controlo do trânsito. Dizem-me que são mais activos pela fresca, ao final da tarde e durante a noite. Com tanta algazarra, mandam-me parar. As motos desaparecem pelas ruas adjacentes e o trânsito aglomerado começa a fluir com maior rapidez. Paro para um pouco de conversa e um "tinto" (café preto colombiano servido por toda a parte em pequenos copos de plástico). Depois das habituais trocas de impressões (até agora nunca revisaram os alforges), sigo viagem.
A estrada aproxima-se da cordilheira oriental e começa a subir lentamente. Os desníveis tornam-se mais acentuados com a passagem de cada vale. Pedalava agora nos "pés" dos andes. As planícies, essas, já tinham desaparecido por completo.
Bucaramanga é uma cidade de montanha agradável, moderna e sofisticada, com inúmeros parques e espaços verdes e temperaturas amenas. É também um marco duplamente importante na minha viagem na Panamericana. Não só entrei oficialmente na cordilheira Andina, mas também será aqui por perto que irei passar o "ponto médio" da viagem, apesar de que já percorri (em quilómetros) mais de dois terços da viagem. Confuso? Eu explico:
Inuvik (o início da viagem) fica à latitude de 68.36243°N, enquanto que Ushuaia, a meta final, fica à latitude de 54.79156°S. O ponto médio entre os dois - segundo indicações de GPS enviadas por e-mail pelo Jeff Kruys - é 6.785435°N, ou seja, a cerca de 40 km a sul de Bucaramanga.
Mas enquanto que a variação de longitude na parte norte do continente foi de cerca de 65 graus entre o ponto mais a Oeste, Dawson city, Canada (139.4166667°W), e o ponto mais a Leste, Baracoa, Cuba(74.4958333°W), na América do sul a variação de longitude será apenas de 13 ou 14 graus, com o ponto mais a Oeste sendo provavelmente Sullana ou Negritos no Peru. O ponto mais a Leste que irá coincidir com a meta final que é a cidade austral de Ushuaia.
Isto significa que irei a partir de agora pedalar "mais a direito" para sul percorrendo "mais" longitude em menos quilómetros.
Descansei um dia em Bucaramanga e na manhã seguinte atiro-me com garras às montanhas. Nos primeiros 40 km a estrada oscilava entre os 700 metros e 1300 metros de altitude, para depois "cair" vertiginosamente num canyon descendo até ao fundo do vale a cerca de 550 metros de altitude. Depois de atravessar um enorme rio passei umas boas 4 horas a subir a encosta sul do Canyon de Chicamocha subindo quase até aos 2000 metros. Na subida ultrapassava então o tal "ponto médio" da viagem. A paisagem que me rodeava era das mais bonitas dos últimos meses.
Do outro lado do passe a estrada desce aos 1100 metros por um outro vale, este mais estreito, verdejante e populado com várias aldeias e cidades coloniais. Encontro-me de momento numa delas, San Gil, conhecida em toda a Colômbia como a "capital" de desportos radicais. Rappel, raft, parapente e escalada são apenas alguns dos pacotes de adrenalina oferecidos pelas inúmeros operadores de agências de aventura espalhados por esta agradável cidade de montanha. San Gil é a primeira cidade colonial espanhola de um circuito que tenho planeado até chegar a Santa Fé de Bogotá
Tinha acabado o dia com o contador a marcar 101 km e acumulado 2055 metros de desnível. Bem vindo à cordilheira andina. A partir de hoje, e durante os próximos meses, será sempre - salvo raras excepções - a pedalar "lá por cima".
Nuno Brilhante
Em San Gil, Colômbia.
10.22.2007
No trilho da cidade perdida... (Colombia)
Cartagena
Para um país onde tudo parece ser feito "ahorita", que traduzido na prática pode ser algures entre um futuro próximo e nunca, o avião chegou com uma pontualidade inesperada, ao mesmo tempo que desfolhava as últimas páginas do livro de José Agualusa, "Um estranho em Goa". Tinha conhecido a Verónica nessa parte do mundo numa viagem que fiz de Nova Delhi para Manali. Viajava para os Himalaias para receber um grupo de amigos da AZ-Trails e passamos uns dias juntos na companhia do Raju ( o nosso futuro guia) nos preparativos da expedição. Prometemos voltar a ver-nos algures no planeta azul. E aqui estava ela, 4 anos depois, no lado oposto ao sub-continente. Conhecia-a pouco mas admirava a sua coragem em escolher a Colômbia para fazer a sua primeira viagem de cicloturismo.
Montamos a sua bicicleta HB (marca espanhola) e eu dou uma revisão geral minha Kona Fire Mountain que já se andava a queixar há algum tempo com "dores" por todo o lado. Troco os calços de travões, mudo um raio traseiro que já andava partido desde o desembarque da "Guiné" (por incrível que pareça, foi o primeiro que se partiu desde que saí de Inuvik), e reforço o suporte dianteiro (ou o que resta dele) com "zip-ties". Contei 29.
Juntamente com um pedaço de corrente, uma espia da tenda e envolto em montes de "tape" pareceu-me suficientemente robusto para aguentar por mais uns tempos.
Analisamos os mapas e traçamos uma rota para as próximas 3 semanas. O plano era seguir a costa do atlântico até Santa Marta, fazer uma caminhada de 6 dias à cidade perdida dos taironas e continuar nas ciclas (como por aqui lhe chamam) pela costa até à península desértica de La Guarija. Estávamos prontos para partir, faltava apenas tratar da minha clandestinidade.
A situação já se arrastava há alguns dias.
Não tive tempo para o fazer antes da Verónica chegar e , na verdade, pensei que o processo fosse simples e rápido. Estava enganado!
Tinha decidido omitir a verdade e dizer que tinha entrado no país de uma forma um pouco mais convencional; a bordo de um veleiro de um casal de turistas americanos. Quando me apresentei na oficina do DAS (emigração) de Cartagena fui bombardeado com perguntas para as quais não tive respostas. O nome do barco, dos donos, onde atracou, em que porto. E mais importante: onde estava o carimbo de saída do Panamá? Vendo claramente que estava a mentir, recusaram carimbar o passaporte. Disseram-me que teria que encontrar o capitão que me trouxe ou o seu agente colombiano, para que eles se responsabilizassem pela emigração, caso contrário teria que pagar a multa que se aplica por entrar clandestinamente no país, o equivalente a um salário mínimo nacional, ou seja 215 dolares.
Decidido a não pagar a multa, parti em busca de um capitão imaginário. Depois de muitos telefonemas, pesquisa na net, visitas a hotéis frequentados por turistas e pelos clubes náuticos e portos da cidade, conheci o David. O "agente". Foi um processo moroso à boa maneira latina, que se arrastou por 4 dias.
Notei a impaciência da Verónica desejosa de começar a pedalar e julgo que chegou mesmo a questionar a minha capacidade de lidar com a situação. Em especial quando lhe disse que entreguei o passaporte a um estranho que conheci em frente ao clube náutico da cidade.
Em cada telefonema parecia obter sempre a mesma resposta do D avid: "Ahorita".
Durante o tempo de espera, já tinhamos visitado e revisitado as atracções desta lindíssima cidade: o castelo Felipe de Barajas, com as suas bonitas vistas da cidade, o Museu do Ouro (nao tão rico como o de Bogotá, mas com uma fantástica colecção de pe ças de ouro pré-colombina), a Plaza de la Inquisició n, os bares do Casco Viejo. Cartagena de Indias pode ser a coroa das jóias da arquitectura colonial espanhola na am érica do sul, mas o calor húmido era sofucante e estavamos desejosos de partir.
10 dias depois de ter entrado no país a bordo da panga de contrabando, recebi o passaporte com um visto de 2 meses, que provavelmente não sera suficiente para o precursso que tenho planeado neste país.
Seguimos viagem pela estrada costeira. Uma excelente estrada com boas bermas , pouco trânsito e plana, que bordeava a costa do atlântico em grande parte do seu percurso e proporcionava uma excelente introdução ao cicloturismo para a Verónica.
Terminamos o dia com o conta kilómetros a marcar 62 km e com um merecido banho na lama morna do vulcão Totumo. Uma formação termo-geológica pouco comum e, provavelmente, o vulcã o mais pequeno do mundo com cerca de 30 metros de altura e com uma pequena cratera cheia de lama.
Esta altura do ano, não é das mais propícias para cicloturismo. As manhãs sao caracterizadas por um sol escaldante e temperaturas desconfortáveis, e as tardes por fortes chuvadas tropicais. Apesar de já pedalar há vários meses na estação das chuvas um pouco por toda a américa central, em nenhum outro país pude observar tão de perto os efeitos causados pelas fortes chuvadas tropicais.
Quase todas as cidades costeiras que tenho passado na Colômbia sofrem de graves problemas de saneamento devido às inundações causadas pelas chuvas.
Numa ocorrência quase diária, os esgotos expulsam os desperdícios atraves das tampas do saneamento que, juntamente com as águas das chuvas, transformam as ruas das cidades em autênticos caudais de lixo. Barranquilla, a quarta maior cidade colombiana, com mais de 2 milhoes de habitantes, foi o pior exemplo. Chegamos já de noite, sobre uma chuva que se intensificou com a nossa chegada. Pedalamos por ruas inundadas, tráfego caótico, bairros com atmosferas pouco amigáveis e mercados de rua vibrantes e semi-imundados, que se estendiam por dezenas de quarteirões. Uma cidade industrial, caótica e pouco segura. Provavelmente a pior cidade por onde passei deste que sai de Inuvik. O centro da cidade em redor do Paseo Bolivar parecia um gigantesco mercado selvagem numa espécie de haulocausto latino. Um erro nos nossos planos de viagem.
Na manhã seguinte a cidade não nos pareceu tão degradante, no entanto, e sem perder tempo, deixamos o nosso hotel "de luxe" no Paseo Bolivar e saimos da cidade com direcção a Santa Marta.
2 dias depois estavamos em santa Marta, onde deixamos as Burras de lado e iniciamos a caminhada atè à cidade perdida.
O produtor de pasta de coca.
Nessa noite o Wilson (o nosso guia) apresentou-nos um senhor que se dizia produtor de pasta de coca, e que se ofereceu para nos mostrar as instalações do seu laboratório - a um preço, é claro! 25.000 pesos não negociáveis. Podíamos tirar fotos desde que prometessemos não o fotografar e retirar o chip da máquina antes do controlo militar à saída das montanhas no regresso à cidade no final do trek.
Jà estavamos no final do nosso primeiro dia de caminhada à cidade perdida e a um mundo de distância da confusâo das cidades de Barranquilla e Santa Marta.
Sentia-me de novo em paz comigo mesmo por estar de novo rodeado pela natureza. Iriam ser cerca de 50 km de caminhada ao longo de 5 dias através das sumptuosas montanhas da Sierra Nevada de Santa Marta. A montanha costeira mais alta do mundo, subindo do nível do mar aos 5775 metros (pico Cristòbal Còlon) num azimute de 42 km.
Na manhã seguinte o PPC (como eu prefiro chamar-lhe) estava à nossa espera no acampamento para nos levar numa curta caminhada de 20 minutos pela floresta até ao seu laboratório.
A vegetação era tão densa que por vezes não se via o trilho. Numa pequena clareira junto a um rio, bem escondido no meio da selva, encontrava-se o seu laboratório. Na verdade, um pouco decepcionante, o seu local de trabalho consistia apenas numas mesas improvisadas com tábuas, alguns barris e jericans , e vários frascos de produtos químicos. "Tenho que manter este lugar o mais discreto possível", disse.
O PPC explicou-nos então, o processo detalhado da produção dessa droga, que segundo a maioria dos colombianos é a causa de todos os males do país.
O PPC tem um hectare de cultivo de plantas de coca na encosta da montanha por cima de nós, no outro lado do rio, e camuflada com árvores e vegetação. Um hectare produz 3 toneladas de folhas, 4 vezes ao ano. O PPC contrata 5 pessoas que levam cerca de 1 mês a "depenar" à mão as plantas, recolhendo cerca de 100 kg por dia. As folhas são esmagadas com uma espécie de trituradora gigante e misturadas com gasolina. Por cada tonelada de folhas usa 120 litros de gasolina.
À sua produção diária de 100 kg de folhas esmagadas e misturadas com gasolina, o PPC adiciona 20 kg de sal e 10 kg de cal (há quem use cimento). A mistela é calcada e misturada com os pés durante várias horas.
À pasta que resulta da "dança" (como o PPC lhe chamou) é adicionado o próximo produto químico: ácido sulfúrico. Num recipiente com 20 litro s de água são adicionados 50 cms cúbicos de ácido sulfúrico puro que, depois de misturados com a pasta, cria 3 camadas. Uma de folhas , outra de gasolina e uma terceira de água com as partículas necessárias ao produto final. Com uma mangueira a água é extraída para outro recipiente. A esses 10 litros de líquido adicionado o seguinte químico: permanganato de potássio, em montante perfeito, feito a olho.
Segundo o PPC, esta é a fase mais importante da produção, pois potássio a mais, ou a menos, não produz a cor branca característica, arruinando toda a produção. Esse líquido roxo escuro e ligeiramente viscoso é coado várias vezes num pano grosso.
O resultado é um líquido transparente que, o olho nu, pouco difere da água.
Depois é finalmente adicionado o último químico: Soda cáustica.
A soda cáustica anula todos os resíduos dos químicos anteriores e, no resultado da reacção efervescente, resultam pequenas partículas brancas que, depois de coadas, revelam o produto final que é secado ao sol.
De um hectare de cultivo, o PPC produz 12 kg de pasta de coca pura ao ano, que vende a 6 milhões de pesos por kilo (cerca de 3000 dólares). Um preço elevado nesta região da Colômbia, diz, pois na região de Los Llanos, onde a produção é feita em maior escala pelos para-militares , o preço é inferior.
A pasta de coca produzida pelo PPC está pronta para ser vendida, mas não para ser consumida. A soda cáustica é nociva para o corpo (e a coca não??) e é necessário retirá-la. Esse processo é feito pela próxima pessoa na cadeia do negócio ilícito, os "mafiosi" (muitas vezes, as guerrilhas ou para-militares), já fora da selva, nalguma cidade ou aldeia do país.
Os "mafiosi" adicionam então o último produto químico: a acetona. A acetona remove a soda cáustica e de cada 1000 gr de pasta de coca resultam 900 gr de cocaína pura à qual é adicionada cerca de 30% de farinha comum.
O produto está finalmente pronto para ser exportado e consumido no mercado mundial.
O PPC quando não está ocupado na produção da pasta de coca, "dedica-se" ao cultivo de yuca, maiz, bananas...e a mostrar o seu laboratório aos poucos caminhantes interressados que por aqui passam a caminho da cidade perdida (também é lucrativo!). O seu laboratório já foi destruído várias vezes pelos militares, retomando o seu trabalho noutro lugar. Há 15 anos que trabalha no ramo, mas apenas há poucos anos que tem o seu próprio hectare de cultivo.
Não mostra as instalações durante a altura de produção.
A cidade perdida
Nesse mesmo dia iria conhecer um outro grupo de pessoas que utiliza a folha da coca de uma forma muito diferente.
Os Kogui são um dos 3 grupos indígenas que habitam a Sierra Nevada de Santa Marta e são os descendentes directos dos Taironas, os fundadores da cidade perdida. Existem cerca de 1200 famílias de Koguis (um número aproximado, pois a maioria vive em zonas quase inacessíveis onde se pode chegar apenas a pé ou em mula). Muitos não falam o espanhol e tem pouco contacto com o mundo moderno. São facilmente identificáveis pelas suas vestes longas de branco sujo (idênticas em ambos os sexos) e pelo aspecto feminino dos homens com cabelo preto longo e liso e pele escura e suave.
Ainda hoje seguem muitas das tradições dos Taironas. Homens vivem juntos numa casa comum e as mulheres vivem com os filhos numa casa separada. Praticam a poligamia onde as jovens raparigas após a puberdade, são iniciadas às experiências sexuais com um Shamen ou educador. Os rapazes, por sua vez , passam determinado tempo a viver com uma mulher mais velha e casada antes do matrimónio para adquirirem as experiências da vida.
Vivem uma vida de subsistência com uma dieta muito simples e pouco variada, yuca, milho, arroz, banana e coca. As folhas de coca seca mascada funcionam como um estimulante e por vezes como substituto de alimentos.
No segundo dia de caminhada deixamos as zonas de cultivo e penetramos pela densa selva, subindo aos 1200 metros. A vegetação era luxuriante e cerrada, cortada apenas pelos leitos de rios selvagens e cascatas. O trilho seguia muitas vezes o leito desses rios e a travessia dos mesmos era frequente, por vezes com água acima da cintura. Só o rio Buritaca atravessamo-lo 18 vezes durante toda o percurso da caminhada.
A cidade perdida não é nenhum Tikal ou Chichen Itza de grandes pirâmides e templos de pedra. De facto há pouco que ver em termos de estruturas, mas é a sua localização perdida no misto da selva, na encosta da Sierra Nevada de Santa Marta que torna este lugar tão especial.
As casas e templos da cidade perdida eram construídos em madeira e palha e há muito que foram consumidas pelos elementos. O que resta hoje são apenas terraços circulares em pedra (existem mais de 1000) que eram as fundações das casas, e o labirinto de caminhos de pedra que se estende por todo o lado na selva.
Mas nesta localização soberba rodeada de montanhas, selva virgem e longe de qualquer vestígio de civilização, é fácil de imaginar o esplendor da civilização dos Taironas.
A cidade foi construída cerca 600 anos antes de Machu Pichu no Peru, e nunca foi encontrada pelos colonizadores espanhóis, que no séc . XV fizeram diversas expedições na região em busca do já então lendário El Dorado.
Apesar dos Kogui afirmarem que ao longo dos séculos sempre fizeram visitas religiosas à cidade perdida, mantiveram segredo, e a cidade não foi descoberta até ao ano de 1972 por caçadores de tesouros (que lhe chamavam de inferno verde, pelas dificuldades que a selva apresentava). Em 1975 iniciam-se as escavações arqueológicas mas pararam em 1982 devido à forte actividade guerrilheira na zona e a pedido dos Kogui, indignados com a contínua profanação dos túmulos dos seus antepassados.
Em Setembro de 2003, 8 turistas foram raptados nesta zona e em 2004 mais um espanhol e um israelita. O ano passado o principal líder dos para-militares (o maior grupo guerrilheiro activo na Colômbia) desta região entregou-se às autoridades, e apesar de ainda haver para-militares na zona, é de novo possível visitar as ruínas da cidade perdida em segurança.
A TURCOL (turismo de Colômbia), a única agência que organiza as caminhadas disse-me que parte dos custos da caminhada são reencaminhados para os para-militares para garantir a segurança dos turistas.
Iniciamos a caminhada de regresso descendo em 2 duros dias o que nos tinha levado 3 a subir. Em Mamey esperava-nos um jeep que nos iria levar (mais uma vez) numa viagem alucinante de 2 horas através das montanhas e de regresso à civilizada cidade costeira de Santa Marta. Depois de um planeado e merecido descanso nas praias do parque nacional de Tayrona iremos dar inicio à próxima etapa da viagem, continuando a seguir a costa até à península semi-desértica de La Guarija.
Carrego nos alforges da memória um dos passeios pedestres mais bonitos que fiz no continente americano. As ruínas da cidade Tayrona, não são apenas uma cidade perdida senão também um mundo perdido.
"...the world doesn’t have to end; it could go on; but unless we stop violating the earth and nature, depleting The Great Mother of her material energy, her organs, her vitality; unless people stop working against the great mother, the world will not last"
Mensagem de apelo ao mundo emitida pelos indígenas Kogui em 1990 através de um arqueologista da Lampeter University, indignados com a de-florestação do seu habitat na da sierra madre de Santa Marta.
Nuno Brilhante
Em Rioacha, Colombia
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