Dia 228
km 14084
Chegamos a cobá ao final da tarde. Numa pequena loja da aldeia Maia compramos os ingredientes que faltavam para a grande ceia: ovos, cebolas, batatas, e outras cenas a uma senhora que com um certo ar apático, mostrava algumas dificuldades em somar os preços da mercearia, falava numa das línguas Maias com uma jovem rapariga que me mostrou o total na calculadora: 64 pesos. Pagamos e pedalamos pela aldeia em busca de um local para acampar. O local ideal parecia ser junto ao lago perto da entrada das ruínas de cobá, mas como não tínhamos intenções de partilhar o jantar com os crocodilos que o habitavam, optamos pelo relvado do campo de futebol da aldeia.
Durante o dia, enquanto o bacalhau salgado vindo da Europa, de-molhava dentro de um garrafão de água colocado no cesto da "burra Mexicana" da Joana com o sol intenso e os buracos da estrada a acelerarem o processo de demolha, debatia-mos como o iríamos preparar. Bacalhau á Brás. Sim, já não me lembrava a ultima vez que o tinha comido, e a ver pelo estado das postas depois de 40 km de viagem aos solavancos, era a melhor opção.
A Joana usava as bancadas do campo como cozinha enquanto eu montava a casa perto de uma das balizas. Por momentos os meus olhos focaram a floresta densa do outro lado do campo, e o meu pensamento penetrou a selva ate á praça principal de rituais rodeada por varias arvores Ceiba, da outrora grande cidade Maia a menos de um quilometro dali. Os Maias acreditavam que o céu, a superfície da terra e o mundo misterioso por debaixo dela (chamado Xibalbá) eram uma estrutura única universal e unificada. Do centro dela transcendia a "arbole del mundo", a primeira forma de vida a surgir do caos da criação cósmica.
Os Maias frequentemente associavam essa arvore á Ceiba, que é bastante comum por toda a região. Uma característica da Ceiba, é que os ramos crescem perpendiculares ao tronco criando formas tipo crucifixo. Com a chegada dos missionários espanhóis que obrigaram os nativos a venerar a cruz, aos olhos dos Maias o símbolo cristão ficou associado á "arvore do mundo". Essa associação ainda hoje é observada.
O jantar dessa noite seria o primeiro de vários festins de gastronomia portuguesa cozinhados em território Maia. A Joana trouxe nos seus dois alforjes não só uma incrível vontade de viajar em bicicleta, mas também algumas cenas que eu necessitava, como 2 pneus Schwalbe Marathon, mapas e guias para a América central, literatura em português, e também alguns ingredientes para saciar as minhas saudades da gastronomia Lusitânia, como chouriços caseiros, bacalhau, azeite entre outras cenas.
Três dias antes, quando a fui esperar ao aeroporto de Cancun, tinha os pensamentos cheios de duvidas. Como se iria adaptar á bicicleta que lhe comprei, ao calor húmido, ao trafico das estradas Mexicanas, ao campismo ao acaso? E nos como companheiros de viagem? Como iria ser?
Durante a preparação desta aventura, a Joana foi a pessoa que mais suporte me deu e que mais me encorajou fazer-la. O sonho de percorrer todo o continente Americano em bicicleta não era só meu. Era nosso!
Na manha seguinte visitamos as ruínas Maias bem cedo, antes da chegada dos inúmeros autocarros com ar condicionado cheios de turistas vindos dos muitos resorts que se elevam aos céus como gigantescos caixotes de cimento, e que transformam a lindíssima costa do Yucatan, numa gigantesca "Gringolandia" fortificada.
Seguimos viagem.
A burra Mexicana da Joana, uma bicicleta de fabrico nacional, marca Mercúrio, que eu tinha comprado na Playa del Carmen, tinha apenas 18 mudanças de punho, e que nem sempre queriam entrar, pesada, e com suspensão dianteira praticamente inutilizada pelo cesto colocado no guiador, não era a bicicleta de escolha para este tipo de viagem, mas apenas por 1300 pesos (85 Euros) já com extras, não podíamos esperar muito. A Joana jogava com a vantagem de a península do Yucatan ser das únicas partes do México sem montanhas, e com a sua incrível vontade e determinação em pedalar. O resultado foram 500 km em 2 semanas, que para a sua pouca ou nenhuma experiência em ciclismo, foi algo de extraordinário.
Seguimos para o interior da península através de pequenas estradas do campo, afastando-nos da costa dos turistas e do trafico. A península do Yucatan, que incorpora os estados de Quintana Roo, Campeche e Yucatan, esteve isolada do resto do país durante séculos (as estradas começaram a chegar á península apenas no inicio dos anos 60) e toda esta região desenvolveu uma identidade, gastronomia e caráter próprio. Esta região foi o núcleo do mundo Maia e ainda o é!
A maioria das pessoas que por aqui vive é descendente directo dos grandes criadores de impérios do passado, e muitos ainda preservam os costumes dos seus assessores incluindo as línguas, modos de vestir e religião.
Com o aparecimento de um novo império, a "gringolandia" de Cancun e arredores, a paisagem da península tem sofrido fortes alterações. Mas basta afastarmo-nos poucas dezenas de quilometros da costa para encontrar aldeias Maias onde o espanhol ainda é língua secundaria, e as cabanas em madeira com tetos de palha, ainda superam as feitas em cimento. E turistas, em especial em duas rodas, ainda são fonte de curiosidade por parte dos locais, em especial as crianças.
Uma semana depois, já com mais de 350 km pedalados, a Joana não dava sinais de cansaço (antes pelo contrario!) e nem a sua burra mexicana, apesar da sua luta constante com as mudanças que não queriam entrar. De facto, era a minha que me estava a preocupar. Já com cerca de 30 mil quilometros de idade, os traços da velhice estavam a começar a exporem-se e os problemas a acumular, com a cassete e cadeia gastas (10.000 km) algumas mudanças já saltavam, o conta quilometros deixou de funcionar, o pneu de trás rebentou, obrigando-me a usar um dos novos que a Joana me trouxe, e o “Derailleur”, deixou de funcionar depois de passar-mos um dia todo a pedalar á chuva e de atravessar poças d´agua que por vezes submergiam a bicla até ao eixo, já para não mencionar que o suporte da frente se partiu pela terceira vez. E tudo isto num espaço de 72 horas.
Pelo menos há uma peça que não se desgasta: a vontade de continuar a pedalar rumo à terra do fogo....
Com os dias contados para chegar a Cancun, orientamos a nossa rota para Este, iniciando o nosso regresso á costa das caraíbas, passando pela reserva natural da biosfera Sian ka´An (onde o céu começa na língua Maia), 5000 km2 de selva protegida, patrimonio da UNESCO, e habitadas por pumas, jaguares, papa formigas, macacos e muitos outros animais. Entramos na reserva por Chumpón, nos iniciais 50 km de estrada não alcatroada, que mais parecia ter sido construída sobre rocha calcaria cortada, fomos recebidos por chuvões (os primeiros desde que entrei no México), que não pareciam incomodar muito a boa disposição da Joana, mas que nos impossibilitou um contacto mais próximo com a fauna local, excepto o ocasional crocodilo,papagaios, e é claro, os milhares de mosquitos...ou iguanas, que por vezes se proximavam mais do que o desejado
A Seria do Tamisa já regressou ás margens do rio que atravessa a cidade onde vive, e eu fiquei de novo a sós com a minha "burra".
-Já nos vemos, foram as suas ultimas palavras antes de se misturar com os outros turistas na zona de embarque do aeroporto. Entendi bem o que queria dizer e sei que vai estar ao meu lado durante toda a viagem.
De regresso á Playa Del Carmen, debato-me de momento com a próxima pedalada a dar. Nos planos inicias nunca me ocorreu passar pela península do Yucatan, mas uma vez que aqui estou e com Cuba mesmo aqui ao lado...
Tenho um amigo em havana, talvez o deva visitar. Afinal de contas, uma viagem mede-se com encontros com pessoas e amigos e não em quilômetros....
Nuno Brilhante Pedrosa
em Playa Del Carmen, Yucatan México.
3.16.2007
Sereia do Tamisa (Mexico)
Cancun, Aeroporto de …13 de Marco 2007 – o regresso
Dei um beijo e um abraço demorado no meu companheiro de viagem e melhor amigo, disse-lhe até breve e não me voltei para trás, avancei para as portas de embarque com um vórtice esvaziante que me empurrava na direcção do avião embora tudo no meu corpo se tentasse ancorar ao pais e ao amigo que agora deixava. Atravessei a noite e de manhã acordei em Gatwick com um sol frio de um grau.- o sorriso irónico desenhou-se na minha face.
Aeroporto de Cancun 27 de Fevereiro 2007 – o reencontro
Estavam ainda os meus poros a experienciar o êxtase provocado pelo calor tropical Mexicano quando senti, na minha pele branca da ausência de sol, o abraço quente apertado, e a voz suave do Nuno ‘bem-vinda’. As pontes do tempo desapareceram, os meses de ausência desmoronaram-se e a distância de um oceano e muitos mil kilómetros afundaram-se por um ralo que duraria 14 dias antes de voltar a encher.
O destino Cancun foi determinado pelo voo barato. Cancun e quase toda a costa da Península do Yucatan que adquiriu o nome pomposo -cortesia do Marketing Turístico - de Riviera Maia, é para mim igual a qualquer outra estância de resorts em qualquer parte do mundo e nem as águas cristalinas me deixaram muito impressionada.
Vejo tudo isto como um acto de prostituição consentida, as selvas virgens e as praias imaculadas foram vendidas em troca de luxuosos conjuntos de arquitectura cimentosa que escondem dentro das suas paredes milhares de quartos cheios de camas uniformizadas, salas de massagens para corpos de turistas, restaurantes com comidas híbridas mundiais. Fora destas paredes a realidade e feita de casas de palha, que a noite invade com redes onde se descansa o corpo depois do dia de trabalho a limpar o resort, a cortar a relva do resort, a servir comida no resort. Que sentirão estas pessoas quando à noite chegam a casa? Compararão confortos? Questionarão diferenças?
O constante som grave e alto que esvoaça dos rádios que ouvem respondem-me que quaisquer que sejam as suas questões existenciais o calor existente em suas almas aquece tanto ou mais que o sol caribenho, e por mais um dia a vida continuara a ser como sempre foi.
A saga do bacalhau
Ser Português. Quantas e quantas linhas foram escritas sobre o ser Português? Eu acrescentarei mais algumas. De como atravessei cerca de 70 kilometros deste pais húmido cheio de selvas e ruínas Maias com um garrafão de 5 litros de água a demolhar umas postas de bacalhau salgado importadas do Reino Unido, a cavalo na minha ‘burra mexicana’. O esforço resultou num belo Bacalhau à Bráz cozinhado numas bancadas de um campo de futebol com erva a dar pelos joelhos e um delicioso Bacalhau à Espanhola saboreado ao pequeno-almoço no nosso acampamento numa pedreira abandonada. Os locais olhavam estupefactos pensando que carregávamos uma cobra ou um bicho malcheiroso qualquer, seguramente para alguma feitiçaria ou coisa semelhante. Recordo a cara de uma rapariga, empregada num restaurante deserto de beira de estrada em que parámos, quando o Nuno lhe entregou o garrafão e pediu que lhe mudasse a água que com os solavancos da burra e o sol tinha já um cheiro bastante acentuado.
O Nuno conta-me de como cada ciclista tem as suas peculiaridades relativamente a comida. Análise feita, parece-me que como Portugueses o valor que damos à alimentação e a determinados ingredientes è levado a um expoente máximo sobretudo quando se esta longe a viajar sem grandes confortos. A existência durante estas cavalgadas passa a determinar-se tão simples e complexamente pelo menu que se vai preparar para as refeições do dia bem como toda a sua logística, sabendo-se de antemão que o sucesso da jornada depende em parte do quão satisfeito se está com aquilo que se come. Nas malas da burra do Nuno cavalgaram também umas chouriças que perfumaram ‘irresistivelmente’ as suas roupas e foram a base para um arroz de feijão e chouriço, que eu modestamente descreveria como fenomenal acompanhado por umas tequillas com limas, estavamos na cidade colonial de Valladolid onde nos demos ao luxo de pernoitar numa pensão com cozinha para confeccionarmos os nossos últimos ingredientes Portugueses com a devida pompa e circunstância.
Ode ao meu corpo
Decidir ir ao encontro do Nuno e pedalar uma burra foi só a consequência de esta ser a forma de transporte escolhida por ele, mas a cavalo numa burra real ou numa burra puxada com a força das minhas pernas a minha percepção geral è que e o importante è ir. Realmente não me ocorreu que não só havia muitos anos que não andava de bicicleta, e que sou uma pessoa muito pouco dada a extremos físicos de esforço, mas que raio, estava determinada a não sofrer por antecipação e a ver quanto o meu corpo estava preparado a surpreender-me.
A surpresa foi grande. Os Deuses Maias abençoaram a minha viagem com estradas planas, aldeias fora das rotas turísticas onde os descendentes Maias ainda ilustram o quotidiano Mexicano nos seus vestidos coroados de flores, os seus sorrisos pueris, a sua língua exótica que te abraça os ouvidos mesmo quando não os entendes, as grutas misteriosas conhecidas localmente como Cenotes que se presentearam durante a nossa pedalada como turquesas e topázios refrescantes de águas cristalinas – a todo este manjar dos sentidos o meu corpo presenteou-me com uma energia desconhecida e uma vontade imparável de pedalar mais e mais, ver mais e mais. Tinha descoberto uma nova paixão – a paixão pelo ciclismo!
Dos sorrisos aos sabores – uma viagem pela minha infância
Proust tornou cliché a lembrança da infância com o associar do cheiro das madalenas. Para mim o México foi uma ‘madalena’ constante que a cada contacto a cada experiência me transportava à minha infância. Saudosismo? Claro, afinal sou Portuguesa.
Na simplicidade da escolha ao entrar numa mercearia onde tudo o que necessitas para sobreviver se encontra nas prateleiras poeirentas e na curiosidade e amabilidade das pessoas que te servem. A vida assim feita de poucas escolhas de consumo tem um equilíbrio inesperado. Ali longe dos longos corredores de hipermercado que te dão ansiedade só por teres de escolher entre 10 marcas diferentes de arroz, 3 pelo menos com vitaminas adicionadas e outras 5 que demoram menos de 3 minutos a cozer. Ali onde não és ignorado e as pessoas te olham com curiosidade e te perguntam de onde vens e para onde vais. Ali onde os produtos ainda sabem ao que devem saber sem meias calorias ou zero de gorduras insaturadas. As velhas marcas de Nestum, Nescafe, o chocolate Abuelita a versão mexicana do chocolate Todi, umas bolachas de canela que me transportaram aos meus dias de parque de campismo. As contas feitas no canto do papel de embrulho, as batatas pesadas numa balança ferrugenta, uma porta aberta nos fundos onde se antevê a intimidade de um lar.
Quando recordo as grandes pirâmides que visitei, silenciosas de vida real, ou a praias de postal sinto que a beleza se encontra em todo o lado não só nas grandes criações humanas e naturais de milénios como também na beleza do quotidiano e de como cada um se adapta aquilo que a vida lhe vai atirando construindo o arco-irís humano que da cor a este mundo que vou tendo a sorte de calcorrear.
Mensagem na garrafa
Num dos últimos dias paramos para almoçar numa praia deserta com todos os requisitos de paradisíaca não fosse o lixo lhe atapetava as areias aveludadas. Este lixo è uma constante nas praias desertas do México, o mar devolve áquelas aureolas de pureza o lixo que lhe é derramado…No meio de todo este lixo estava uma garrafa vazia com rolha, o Nuno agarrou na garrafa, numa caneta e papel e deu-me para escrever uma mensagem. Pois seja essa mensagem feita desejo, um facto tornado realidade – que carregue essa garrafa a porta para as muitas mais viagens que sei que ainda tenho para fazer e que algumas delas possam ser na companhia do homem que me mostrou que os únicos impossíveis que existem são os que te impões a ti mesmo!
Joana
Dei um beijo e um abraço demorado no meu companheiro de viagem e melhor amigo, disse-lhe até breve e não me voltei para trás, avancei para as portas de embarque com um vórtice esvaziante que me empurrava na direcção do avião embora tudo no meu corpo se tentasse ancorar ao pais e ao amigo que agora deixava. Atravessei a noite e de manhã acordei em Gatwick com um sol frio de um grau.- o sorriso irónico desenhou-se na minha face.
Aeroporto de Cancun 27 de Fevereiro 2007 – o reencontro
Estavam ainda os meus poros a experienciar o êxtase provocado pelo calor tropical Mexicano quando senti, na minha pele branca da ausência de sol, o abraço quente apertado, e a voz suave do Nuno ‘bem-vinda’. As pontes do tempo desapareceram, os meses de ausência desmoronaram-se e a distância de um oceano e muitos mil kilómetros afundaram-se por um ralo que duraria 14 dias antes de voltar a encher.
O destino Cancun foi determinado pelo voo barato. Cancun e quase toda a costa da Península do Yucatan que adquiriu o nome pomposo -cortesia do Marketing Turístico - de Riviera Maia, é para mim igual a qualquer outra estância de resorts em qualquer parte do mundo e nem as águas cristalinas me deixaram muito impressionada.
Vejo tudo isto como um acto de prostituição consentida, as selvas virgens e as praias imaculadas foram vendidas em troca de luxuosos conjuntos de arquitectura cimentosa que escondem dentro das suas paredes milhares de quartos cheios de camas uniformizadas, salas de massagens para corpos de turistas, restaurantes com comidas híbridas mundiais. Fora destas paredes a realidade e feita de casas de palha, que a noite invade com redes onde se descansa o corpo depois do dia de trabalho a limpar o resort, a cortar a relva do resort, a servir comida no resort. Que sentirão estas pessoas quando à noite chegam a casa? Compararão confortos? Questionarão diferenças?
O constante som grave e alto que esvoaça dos rádios que ouvem respondem-me que quaisquer que sejam as suas questões existenciais o calor existente em suas almas aquece tanto ou mais que o sol caribenho, e por mais um dia a vida continuara a ser como sempre foi.
A saga do bacalhau
Ser Português. Quantas e quantas linhas foram escritas sobre o ser Português? Eu acrescentarei mais algumas. De como atravessei cerca de 70 kilometros deste pais húmido cheio de selvas e ruínas Maias com um garrafão de 5 litros de água a demolhar umas postas de bacalhau salgado importadas do Reino Unido, a cavalo na minha ‘burra mexicana’. O esforço resultou num belo Bacalhau à Bráz cozinhado numas bancadas de um campo de futebol com erva a dar pelos joelhos e um delicioso Bacalhau à Espanhola saboreado ao pequeno-almoço no nosso acampamento numa pedreira abandonada. Os locais olhavam estupefactos pensando que carregávamos uma cobra ou um bicho malcheiroso qualquer, seguramente para alguma feitiçaria ou coisa semelhante. Recordo a cara de uma rapariga, empregada num restaurante deserto de beira de estrada em que parámos, quando o Nuno lhe entregou o garrafão e pediu que lhe mudasse a água que com os solavancos da burra e o sol tinha já um cheiro bastante acentuado.
O Nuno conta-me de como cada ciclista tem as suas peculiaridades relativamente a comida. Análise feita, parece-me que como Portugueses o valor que damos à alimentação e a determinados ingredientes è levado a um expoente máximo sobretudo quando se esta longe a viajar sem grandes confortos. A existência durante estas cavalgadas passa a determinar-se tão simples e complexamente pelo menu que se vai preparar para as refeições do dia bem como toda a sua logística, sabendo-se de antemão que o sucesso da jornada depende em parte do quão satisfeito se está com aquilo que se come. Nas malas da burra do Nuno cavalgaram também umas chouriças que perfumaram ‘irresistivelmente’ as suas roupas e foram a base para um arroz de feijão e chouriço, que eu modestamente descreveria como fenomenal acompanhado por umas tequillas com limas, estavamos na cidade colonial de Valladolid onde nos demos ao luxo de pernoitar numa pensão com cozinha para confeccionarmos os nossos últimos ingredientes Portugueses com a devida pompa e circunstância.
Ode ao meu corpo
Decidir ir ao encontro do Nuno e pedalar uma burra foi só a consequência de esta ser a forma de transporte escolhida por ele, mas a cavalo numa burra real ou numa burra puxada com a força das minhas pernas a minha percepção geral è que e o importante è ir. Realmente não me ocorreu que não só havia muitos anos que não andava de bicicleta, e que sou uma pessoa muito pouco dada a extremos físicos de esforço, mas que raio, estava determinada a não sofrer por antecipação e a ver quanto o meu corpo estava preparado a surpreender-me.
A surpresa foi grande. Os Deuses Maias abençoaram a minha viagem com estradas planas, aldeias fora das rotas turísticas onde os descendentes Maias ainda ilustram o quotidiano Mexicano nos seus vestidos coroados de flores, os seus sorrisos pueris, a sua língua exótica que te abraça os ouvidos mesmo quando não os entendes, as grutas misteriosas conhecidas localmente como Cenotes que se presentearam durante a nossa pedalada como turquesas e topázios refrescantes de águas cristalinas – a todo este manjar dos sentidos o meu corpo presenteou-me com uma energia desconhecida e uma vontade imparável de pedalar mais e mais, ver mais e mais. Tinha descoberto uma nova paixão – a paixão pelo ciclismo!
Dos sorrisos aos sabores – uma viagem pela minha infância
Proust tornou cliché a lembrança da infância com o associar do cheiro das madalenas. Para mim o México foi uma ‘madalena’ constante que a cada contacto a cada experiência me transportava à minha infância. Saudosismo? Claro, afinal sou Portuguesa.
Na simplicidade da escolha ao entrar numa mercearia onde tudo o que necessitas para sobreviver se encontra nas prateleiras poeirentas e na curiosidade e amabilidade das pessoas que te servem. A vida assim feita de poucas escolhas de consumo tem um equilíbrio inesperado. Ali longe dos longos corredores de hipermercado que te dão ansiedade só por teres de escolher entre 10 marcas diferentes de arroz, 3 pelo menos com vitaminas adicionadas e outras 5 que demoram menos de 3 minutos a cozer. Ali onde não és ignorado e as pessoas te olham com curiosidade e te perguntam de onde vens e para onde vais. Ali onde os produtos ainda sabem ao que devem saber sem meias calorias ou zero de gorduras insaturadas. As velhas marcas de Nestum, Nescafe, o chocolate Abuelita a versão mexicana do chocolate Todi, umas bolachas de canela que me transportaram aos meus dias de parque de campismo. As contas feitas no canto do papel de embrulho, as batatas pesadas numa balança ferrugenta, uma porta aberta nos fundos onde se antevê a intimidade de um lar.
Quando recordo as grandes pirâmides que visitei, silenciosas de vida real, ou a praias de postal sinto que a beleza se encontra em todo o lado não só nas grandes criações humanas e naturais de milénios como também na beleza do quotidiano e de como cada um se adapta aquilo que a vida lhe vai atirando construindo o arco-irís humano que da cor a este mundo que vou tendo a sorte de calcorrear.
Mensagem na garrafa
Num dos últimos dias paramos para almoçar numa praia deserta com todos os requisitos de paradisíaca não fosse o lixo lhe atapetava as areias aveludadas. Este lixo è uma constante nas praias desertas do México, o mar devolve áquelas aureolas de pureza o lixo que lhe é derramado…No meio de todo este lixo estava uma garrafa vazia com rolha, o Nuno agarrou na garrafa, numa caneta e papel e deu-me para escrever uma mensagem. Pois seja essa mensagem feita desejo, um facto tornado realidade – que carregue essa garrafa a porta para as muitas mais viagens que sei que ainda tenho para fazer e que algumas delas possam ser na companhia do homem que me mostrou que os únicos impossíveis que existem são os que te impões a ti mesmo!
Joana
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