Dia 191
Km 12529 O Sinaloa Star atracou no porto de Mazatlan ao lado de um navio de cruzeiros, pelas 10.30 da manha.
Foi a bordo de um desses navios, o famoso "down princess", que eu tinha chegado a Mazatlan, na primeira das minhas quatro visitas ao mexico.
Mas desta vez iria ser diferente.
Fui um dos primeiros a desembarcar. Montei na burra e galopei para o centro da cidade em busca de um hotel. Em 15 anos a cidade tinha mudado tanto que estava irreconhecível aos meus olhos.

A única parte da cidade que consegui identificar foi o "malecòn", ou passeio junto ao mar, e o "zocàlo" ou praça principal com a catedral espanhola e as suas duas torres amarelas. Estavam 27 graus, apenas 2 ou 3 graus a mais do que em La Paz, mas a humidade era elevada.
Passei 5 dias na cidade, alem de dar uma revisão geral ao meu equipamento e retirar a poeira do deserto pouco mais fiz...
Ao 5 dia sai da cidade pouco depois do amanhecer. A paisagem que me rodeava era completamente diferente da "Baja", parecia outro pais. Os cactos deram lugar a arvores de manga e abacate, e o deserto árido de há poucos dias atrás, transformou-se em florestas húmidas verdes e tropicais. Os ranchos com algumas vacas magras que na "Baja" se avistavam de longe em longe, aqui estão rodeados de plantações de milho, melancias, papaias e outros frutos e vegetais. E há gente, e aldeias e trafico por todo o lado. A água e abundante com rios e lagos.
Tinha entrado "oficialmente" nos trópicos...

Em Escuinapa de Hidalgo a "carretera de cota", designação dada a uma auto-estrada mexicana, que è mais uma via rápida com portagens (não para ciclistas!) e boas bermas, terminou, e durante vários quilòmetros tive que pedalar pela "La federal", cujo trafico intenso e bermas quase inexistentes, era de arrepiar os cabelos atè ao ciclista mais experimentado. Entre Escuinapa e Ruiz, havia um troço de auto-estrada em construção, que segundo alguém com quem falei, era transitável para ciclistas.
Pela primeira vez na viagem tive, não uma estrada, mas sim uma auto-estrada só para mim. Um pavimento liso com cerca de 30 metros de largura, km após km, sem trafico!!. A super-estrada cortava por paisagens tropicais, com lagos cheios de pássaros, incluindo os "spoonbill", um pássaro rosado semelhante ao flamingo, e alguns campos agrícolas e pequenas aldeias ainda não transformadas pelo impacto da nova via rápida.

Era bom demais para ser verdade, estava tão feliz que ate fazia malabarismos com a bicicleta, tipo andar sem mãos, etc. Sabia que era um momento único na viagem e estava a usufruir de cada km pedalado. Mas não estava sozinho. Apesar do pavimento estar completo, ainda havia vários grupos de trabalhadores ao longo do caminho a tratar dos acabamentos finais.
A minha sorte estava para mudar radicalmente.
Numa ponte não acabada, não vi uma pequena falha com pouco mais de 30 cm, o impacto da roda e o peso das malas quebraram o suporte dianteiro. primeiro o esquerdo, torcendo a vara que os une por debaixo da roda, obrigando o do lado direito a partir em 2 lados.
ficou feito num oito...literalmente!

foi-me impossível encontrar um suporte em Portugal, como vou encontrar um no México? Ou quem me o vai soldar, uma vez que è feito de alumínio? e como e que eu vou sair daqui?
Nos preparativos desta viagem, um pouco à pressa, tinha passado uma tarde em Lisboa à procura de um suporte dianteiro sem sucesso. Foi já em Seattle nos estados unidos, quando em transito para o Ártico , enquanto esperava pela bicicleta que se tinha "perdido" no vôo vindo de Londres, que encontrei um suporte e umas malas dianteiras,
Caiu a noite, e o Céu enublado transformou a noite num preto quase sólido. Não se via vivalma e o chilrear da passarada era ensurdecedor, como que a protestar a minha intrusão. ao lado da super-estrada estava uma arvore, semi coberta com silvados e plantas trepadeiras, e que me pareceu o lugar ideal para monta a rede. ( a minha rede esta a tornar-se numa das peças de equipamento que mais valorizo) encostei a bicicleta à arvore e não lhe toquei mais nessa noite...estava meio enfuriado pelos acontecimentos do final de dia e nem queria averiguar os estragos feitos. Pelo menos vou fazer um bom jantar, pensei.
Tinha comprado comida em Mazatlan, e comecei a preparar um refogado de cebola alho azeite, folhas de louro e chiles. ao qual esperava adicionar molho de tomate e vegetais, e mais tarde um pacote de pasta.. Monto o fogão e dou umas 10 a 15 bombadas para criar pressão na botija de gasolina. Acendo um cigarro e o fogão ao mesmo tempo como já era ritual. De repente o fogão entra em chamas. Entrei meio em pânico, sem saber bem o que fazer. soltei a patilha de segurança e separei o fogão da garrafa de gasolina dando-lhe um chuto com a bota. enterrei as mãos na terra e comecei a combater as chamas.
Boa! sem suporte e agora sem jantar.
Tudo o que tinha comprado não era comestível sem ser cozinhado. Tinha feito 150 km e essa noite o meu jantar foi uma banana e um pacote de bolachas com muita água. Só falta cair-me uma tarântula durante a noite, pensei. não dormi bem essa noite.

Mas que raio estou eu a fazer aqui, a dormir nesta rede, debaixo desta arvore estranha, no meio dos trópicos, do nada, e com uma bicicleta como meio de transporte?? Porque não faço como toda a gente, e viajo de carro? Ou de avião? A minha mãe sempre me disse que eu era do contra. Talvez tenha razão!
Mas julgo que seis meses depois, estou mais receptivo a dificuldades, estou mais aberto, mais eu próprio. È essa a cena de viajar em bicicleta, è como retirar uma camada de pele a mim mesmo, expondo a carne e expondo-me a mim próprio ao mundo, para que ele se exponha a mim. Na manha seguinte desmonto a rede, retiro os painéis do suporte danificado e coloco as malas dianteiras, uma em cada lado do guiador. A auto-estrada não estava assinalada no meu mapa e não tinha a certeza de onde estava. pensei que, se cortasse para a esquerda no próximo caminho que encontra-se, mais tarde ou mais cedo iria ter à estrada principal, que deveria ser mais ou menos paralela. tinha feito apenas 2 km quando tive um furo. uma das muitas pedras do caminho tinha feito um pequeno corte no pneu. ainda devia trazer comigo alguma energia ou Zen só favorável aos desertos e era necessário adaptar-me com rapidez aos trópicos. A continuar com este azar não ia conseguir chegar a Cancun a tempo de receber a Sereia do Tamisa.

30 km depois, esfomeado, fiz a minha entrada triunfante na cidade de Acaponeta. E o primeiro restaurante que vi, entrei, esperando ansioso que a dona me servisse. Tirei a barriga de misérias com um jantar/pequeno almoço avantajado. comecei com uns ovos mexidos com chouriço picado e chilles e um cesto de tortilhas e um café. Seguido de um bisteck a la rancheira (uma espécie de guisado de carne) e mais um cesto de tortilhas. muitos pratos mexicanos, especialmente nos restaurantes de rua, são servidos apenas com uma colher e acompanhados por um cesto de tortilhas. Com a tortilha na palma da mão, usando a colher, põe-se um pouco de tudo, cerrando primeiro a metade, depois com o dedo indicador, numa das pontas, deixando escorrer o molho primeiro, e volta-se a dobrar mais uma vez. o resultado è uma refeição de consecutivas sandes de tortilha, que requer certa pratica e tempo de aperfeiçoamento. Essa manha não havia tempo! Comi o bisteck à colherada e com a outra mão ia molhando as tortilhas no molho. Pedi mais um cesto de tortillas e pouco depois mais um bisteck e outro café, acompanhado por um "pay queso" (torta de queijo).
A baguete, para desapontamento dos franceses, não è o pão mais comido no mundo. De facto è a tortilha, cujo nome vai mudando com o girar do globo, chapati na índia, pita no médio oriente, etc, etc. Na sociedade mexicana a tortilha tem tanta importância que chega a ser objecto de campanha política. De momento Filipe calderon esta em apuros com a promessa de manter o preço da tortilha abaixo dos 8.5 pesos o kilo.(€0.60/kg)

Depois de muitas voltas pela cidade, encontrei uma oficina que garantiu-me Juarez, o dono, era a única oficina nas redondezas que soldava alumínio. Bueno, faz o que puderes, disse-lhe, mostrando as varias partes do suporte partido e explicando como era a forma original. 7 horas depois mostrou-me a reconstrução, que de facto parecia ser mais forte do que a anterior. Passei a noite na cidade e no dia seguinte voltei à "minha" auto-estrada, para pedalar mais 80 km em paz. Ate que um grupo de trabalhadores me mandou parar. um deles disse: no hay paso! um outro jovem aproxima-se e pergunta se eu sou o ciclista que vem do ártico. A ultima vez que tinha dito a alguem o local de origem desta viagem foi em Mazatlan, a 250 km atrás. As noticias espalham-se como fogo selvagem.
Fiz no total 130 km na "minha" auto-estrada privada.
De regresso a EN200 (ou pan americana), conhecida apenas por "la federal",a realidade foi outra.

A EN200 è a única estrada que bordeia o pacifico, e o trafico varia entre, perigosamente intenso,atè quase inexistente, como è o caso do troço de 250 km no lindíssimo estado de Michoacan, onde a EN200 mais parece uma estrada rural, sem trafico e cheia de buracos... Nesta segunda etapa no México, nos 1500 km que separam Mazatlan de Acapulco, a "carretera costera" levou-me pelos extremos da "cultura de praia", desde mega-resorts, onde os hospedes pagam atè 1000 euros por noite e transitam entre o aeroporto e o hotel em helicóptero, a zonas de turismo mais convencional, e a pequenas praias de surfistas ou a praias com ambiente de viajantes "hippies" ao bom estilo de goa, kopangan ou dahab.
Por entre praias de mega resorts e gettos de surfistas, existem aldeias Mexicanas cujo estilo de vida se enquadra com o clima quente e hùmido da costa do pacifico. A siesta ainda è respeitada pela maioria, e atè das casas mais pobres, o som ensurdecedor da "musica ranchera" preenche o ar com uma alegria quase nostálgica. Sendo uma zona tropical hùmida, os encontros com a fauna local são inevitáveis.

Foi o que aconteceu no dia 183. Tinha montado a rede, mais uma vez, debaixo de uma arvore. Depois do pequeno almoço inicio o meu ritual diário de empacotamento, quando deparo com um escorpião aninhado no lado de fora de uma das malas. Não o matei, pois era eu que me estava a intrometer no seu território e não o reves. Como encontros com aracnídeos não è algo que uma pessoa nutra com facilidade, durante a manha o tema central dos meus pensamentos pedalantes foi o escorpião. E se houvesse outro? Se calhar andam aos pares. Sei lá! Os seus hábitos são-me completamente alheios. Talvez tenha entrado para dentro de uma das malas, ou por debaixo do selim!
Essa idéia pôs inrequieto, pedalava com tal desconforto, que parei a bicicleta. Inspecionei as malas, rasguei uma folha do meu guia pus-lhe fogo e passei-a por debaixo do selim. A burra era minha, e desta vez, era o escorpião que invadia o meu território. Tinha que matar-lo. Afastar-lo dos meus pensamentos.
Segui a minha migração em duas rodas rumo ao sul.

Nssa mesma tarde vejo uma tarântula a atravessar a estrada.
E para quem nao tem a noçao do tamanho do bicho, tirem como referencia a tampa da coca-cola

Dias depois dos meus varios encontros com a fauna local, chego a praia de Ixtapa. Ixpata è uma daquelas praias resort, onde existem todas as facilidades para o turista. Praias idílicas, hotéis 5 estrelas, restaurantes italianos ou de sushi japonês, e para os gringos que tenham saudades de casa, Mac Donalds, starbucks e subways...È o que eu gosto de chamar; turismo em prisões no estrangeiro, e que tento evitar a todo o custo.
Ate ao inicio da década de 70, Ixtapa não era mais do que uma plantação de coqueiros, e Zihuatanejo uma aldeia de pescadores adormecida. Tudo mudou quando a Fonatour (o departamento governamental para o desenvolvimento do turismo) decidiu que a costa do Pacifico necessitava de uma estância turística moderna e mais dinâmica que competisse os complexos turísticos de Acapulco e puerto vallarta. Comprou a plantação de coqueiros, criou as infranstruturas e estendeu a carpete vermelha às cadeias de hotéis de luxos e construtores de condomínios, com casas que passam dos 4 e 5 milhões de dólares.

Mas como tinha lá um contacto, articulado através da Lynn Pilgrim dos EUA, uma forte entusiasta e colaboradora desta aventura, resolvi dar um passeio por là.
A Lourdes era uma mexicana dona de um restaurante italiano, e recebeu-me cordialmente. O que se passou a seguir, foi um pouco surrealista para um ciclista habituado a poeira das estradas. O restaurante/esplanada estava cheio, obviamente de "gringos" milionários. A Lourdes fez questão em me apresentar a todas as mesas, como o ciclista que estava a unir os pòlos em bicicleta. Durante a noite entretive a clientela com as minhas historias de viagem, aproveitando para promover a minha causa: As crianças especiais da APPC Leira. Um casal de gringos, a dar o seu passeio noturno por este oásis de riqueza, parou por momentos escutando-me com entusiasmo. Aceitas donativos, perguntou, assando-me uma nota verde e encrespada para a mão, e seguiu o seu passeio. No final da noite no meu hotel de 100 pesos (7 euros)na praia de Zihuatenajo, 10 km a sul, ponho a mao no bolso e retiro as varias notas que a minha audiência me tinha dado. Uma delas, a encrespada, era de 100 dólares. Nem queria acreditar!!

No dia seguinte, segui viagem. Pedalei todo o dia sobre um sol abrasador que ao meio dia passou a marca dos 40 graus. A t-shirt ensopada colava-se ao corpo, e não a podia tirar porque, nos dias anteriores ao pedalar em tronco nu, queimei o corpo ao ponto de ficar com os ombros cheios de bolhas dágua. Ao final da tarde a "carretera costera" desceu os montes e aproximou-se da costa. De uma das colinas, com o sol a pôr-se sobre a linha que divide o mar do pacifico de um céu avermelhado, avisto uma pequena aldeia de pescadores com meia dúzia de casas feitas em madeira e construídas debaixo da sombra de um coqueiral. Sai da EN200 e entrei pela aldeia, empurrado a bicicleta pelo caminho arenoso ate a praia. Perguntei ao Juan, um pescador, se podia acampar na praia. No hay problema, amigo, respondeu.
Montei a tenda e comecei a cozinhar. Mais tarde vejo o vulto de varias pessoas a aproximarem-se. Era Juan, a sua esposa e os seus 4 filhos. Sentaram-se todos na areia em redor do meu fogão. Partilhei o meu jantar com os filhos uma vez que os pais não aceitaram. Hoje não precisava contar historias para cativar a minha audiência. Bastava que eles me observassem, e para mim, bastava-me a sua presença.

Na manha seguinte acordei com o amanhecer e decidido a chegar a Acapulco. Bati um novo Recorde nesta viagem, com 154 km pedalados em 9.04h, subindo uma das varias encostas que rodeiam a baia de Acapulco, já depois do por do sol.
Acapulco tem uma vibração quase palpável. Trafico caótico, poluição, uma baia lindíssima, turística, violenta, mas com praças cheias de sombra, calmas e serenas. E uma vida noturna, que dizem ser das melhores de toda a costa do Pacifico.
Restam-me apenas maís 400 km pela "carretera costera" atè porto Escondido, o ponto mais a sul, desta minha passagem pelo México. Ai abandonarei o Pacifico, para não o voltar a ver, provavelmente ate El Salvador, e começarei a árdua subida para nordeste, pela cordilheira Sierra Madre Sur, através dos estados de Oxaca e Chiapas, habitados por grupos indígenas, descendentes dos Maias e Astecas.
Nos próximos meses, ate chegar a Colômbia, o meu itinerário será um "zig-zag" por entre as costas do mar das caraíbas e o pacifico, e esta todo ele ainda por definir...

Nuno Brilhante Pedrosa
em Acapulco, México