10.20.2006

De novo nas Rocky Mountains (EUA)

Dia 80
Km 5544



O Yellowstone national park, foi o primeiro parque a ser estabelecido no mundo em 1872, e provavelmente uma das grandes contribuições dos americanos para a cultura mundial; a criação do conceito de parque nacional. Eles existem agora em praticamente todos os países do mundo, e protegem ecossistemas, que de outra forma seriam destruídos pelo maior predador do mundo animal: o próprio homem.
Yellwstone divide-se em 4 partes distintas. As zonas termais do noroeste (mamoth hot springs), a zona remota e montanhosa do nordeste (rosevelt), o lago alpino de yellowstone a sudeste e a zona das "gyesers" a sudoeste.
As 4 zonas estão ligadas por uma estrada de cerca de 300 km numa forma de 8.
As facilidades do parque já estavam praticamente todas fechadas, o que me obrigou a carregar alimentos para vários dias. Nos primeiros 2 dias ainda apanhai o final de uma alta pressão, com bastante sol. Mas foi sol de pouca dura.
O parque, e todo ele acima dos 2300 metros e com desníveis acentuados. Registrei a maior altitude ate ao momento (2583 metros), e nem tão pouco foi um passe, mas sim numa das elevacoes da estrada, ao bordear a grand caldera, uma das maiores crateras do planeta.

Já ia na estrada para sul, com Direcção ao adjacente parque nacional grand teton, conhecido pelas gigantescas montanhas vulcânicas, quando vejo pelo meu novo retrovisor da bicicleta, as nuvens escuras e pesadas a norte, no horizonte. Estava a 160 km de Jackson Hole, a ate la todos os parques de campismo, restaurante e resorts já estavam fechados.
Numa situação normal, não me preocuparia em arranjar 10 metros quadrados para montar a minha casa, mas viajava em alta montanha, onde sei por experiência, que o tempo pode se tornar bastante adverso em espaço de minutos. Decidi pedalar ate ao parque de campismo de Bridge Bay, que apesar de fechado, me oferecia abrigo para cozinhar e talvez ate fazer uma fogueira. Assim que anoiteceu, a escuridão era total.
Montei a tenda e encontrei uma das casas de duches aberta que usei como cozinha. Estavam 4 graus negativos e a escuridão era absoluta. Depois de jantar enfiei-me no meu saco de cama, e liguei o meu fogão a gasolina para servir de aquecimento central, como já tinha feito noutras situações.
Comecei a escrever no meu diário mas estava demasiado frio, desfolhei as paginas, e a minha atenção focou-se no que tinha escrito há mais de um a semana atrás:

"...Com cada dia que passa, a vida parece ser menos complicada, sem ter que pensar no que se passa no mundo fora. Mas talvez eu deva pensar mais acerca do mundo verdadeiro, e qual o meu papel nele.
Apesar da carga na "burra", viajo Tao leve, que não penso muito nisso.
E a escola? porque a deixei tão cedo? Desisti porque pensei que poderia aprender mais por mim próprio. Queria viver a vida do momento em vez do futuro. Mas viver cada momento e difícil. Significa pedalar sem destino, sem saber ao certo qual a próxima estrada a tomar. Mas pelo menos tenho um tecto....a minha tenda.
A minha tenda, quase 3 meses depois, já a sinto como a minha casa. Um ninho, um forte, uma caverna.
O desejo humano de viver numa caverna deve ser por instinto. Seres humanos devem ter um instinto básico de arranjar locais acolhedores, privados, onde pernoitar, e onde são livres de ser eles mesmos, de se esconderem do mundo.
Eu tenho a minha tenda, o meu ninho, forte, a minha caverna, mas mais importante do que isso tenho-me a mim mesmo dentro dela. Horas após horas do meu ser a viver nesta caverna que e a minha tenda.

Passando tanto tempo só, começo a descobrir-me a mim próprio.....e estou a gostar! Quando estas rodeado de outras pessoas o tempo todo e constantemente distraído, acabas por te esquecer do que e feito da alma que habita o corpo onde vives. Vivendo assim, parece-me evidente que a verdadeira alegria vive sobre camadas no corpo, camadas de conveniência,de conforto e compromissos. Removendo essas camadas Trás-nos mais próximo da razão fundamental da alegria de viver.
Aqui dentro da minha tenda caverna, a vida e simples, no entanto não há nada no mundo criado pelo homem, que possa ser tão complexo como um pequeno fóssil que encontrei na berma da estrada esta tarde.
Quanto mais pedalo nesta estrada solitária rumo a terra do fogo mais estas paisagens crescem dentro de mim. De facto estou a adorar viajar assim, solitário, vivendo uma vida elementar com a natureza selvagem.
Isso deve ser a nossa carência quase religiosa, de viver uma vida entrelaçada com os cosmos, com as montanhas, com o ar, a agua o sol.
Conseguirei adaptar-me de novo no mundo onde nasci depois desta viagem? Esse mundo que me parece Tao distante? pertenço a ele?

Viajar assim, solitário, dia após dia, transpôs-me a parte desse mundo. A vida parece-me tão mais simples assim...tão básica!
As noites e o que eu temo.
O sol e a minha consolação. Depois de uma noite fria, aquece-me o corpo e a alma durante todo o dia. E faz coisas espetaculares nos céus e nas rochas ao final do dia. Com casa entardecer uma pintura diferente..."

No dia seguinte acordo , não com sol, mas sim com o acampamento coberto de neve. A uns 50 metros da tenda, um lobo passeava pela neve fresca em busca da sua presa. Tomo um pequeno almoço reforçado, 4 pacotes de cereais com 2 bananas, 2 chocolates quentes, 6 fatias de pão barrado com nutella, e para terminar um café e 2 danish (bolos), um comprimido multi-vitaminas e um cigarro.E incrível o apetite de um ciclista!
Arrumo tudo apressadamente, não por ter pressa de ir a algum lado, mas por talvez pensar que os movimentos rápidos me mantenham aquecido. Quando estava pronto para partir começou a nevar de novo.

Não tinha alternativa senão continuar. Se o tempo piorasse havia a hipótese de cortarem a estrada, o que me deixaria numa situação pouco desejável. Nevou todo o dia, por vezes em grandes flocos, alguns ficavam pendurados na barba. Lembrei-me que, se existissem óculos com para-brisas, seriam úteis nesse dia. Vestia tudo a dobrar, 2 pares de meias grossas, 2 calcas, 4 camadas, poncho,2 pares de luvas, mais sacos de plástico nas mãos e nos pés. De facto as malas dianteiras, onde guardo toda a roupa, estavam quase vazias.
Mais uma noite de acampamento sobre a neve....
O parque de grand Teton e cerca de 500 metros mais baixo do que o vizinho Yellowstone, e na descida notou-se logo uma grande diferença de clima. Estava apenas frio, escuro, húmido e a chover...
Aqui em jackson Hole, encontrei um hostel (não são muito comuns nos Estados Unidos) onde partilho as 20 e tal camas e a sala de estar aquecida, apenas com um outro turista, uma californiana, e os empregados mexicanos.
Assim que tiver as energias restabelecidas, irei para oeste ate encontrar o mar. Fica encontro marcado para as aguas amenas do pacifico...

Nuno Brilhante Pedrosa
em Jackson Hole, Wyoming, USA

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