9.24.2007

travessia para a Colômbia parte III (Colômbia)

A bordo da Panga colombiana

Vista do céu azul num dia de sol e mar calmo, a lancha a afastar-se da ilha Ballena rodeada de praias de areia branca e fina, coberta de coqueiros e com um mar verde transparente que se ia transformando em azul turquesa e depois no azul escuro do vasto oceano, podia parecer que estava a iniciar uma viagem algures numa paisagem idílica das caraíbas. Mas às 7.10 da noite a bordo de uma lancha de contrabando com 3 desconhecidos, completamente às escuras num mar agitado, o cenário era aterrorizante. O meu único reconforto era saber que íamos para a Colômbia e não vínhamos da Colômbia o que assegurava que não era contrabando de narcotráficos. O que era nunca cheguei a saber e nem me atrevi a perguntar. Não tardou que isso fosse a menor das minhas preocupacoes.

A mercadoria estava apinhada até bem acima da linha do barco e apenas com um espaço vazio a meio, com cerca de meio metro de comprimento e em toda a largura da lancha. Foi neste "buraco" que me enfiei e viajei as 11 horas sem me mexer. Ao meu lado viajava o ajudante cujas feições não iria ver até ao amanhecer. A sua função durante toda a viagem era retirar com um recipiente de plástico a água que ia entrando quando as ondas eram mais fortes e da intensas chuvadas que caíram por duas vezes. Julgo que a razão de esses "buraco" existir era essa mesmo.

Ocasionalmente e a mando do "capitão", o rapaz subia para cima da carga, e com um agilidade que demonstrava hábito, mantinha o equilíbrio olhando para o escuro infinito do oceano, tentando avistar algum ponto de referência. Alguma montanha na costa, a luz de alguma patrulha colombiana, e na parte final da viagem, algum indício de terra firme, uma claridade ou um farol.

Na parte de trás da Panga (barco em colombiano) iam os outros 2 tripulantes cada um sentado em frente a um motor, apesar de usarem apenas um, viajávamos a bom ritmo. O piloto tinha à sua frente um instrumento rudimentar de navegação dentro de uma caixa de madeira que ia consultando ao longo da viagem com uma lanterna.

Os 3 homens falavam pouco. Os momentos de silêncio eram enormes. Por vezes de meia hora ou mais. E comigo então, nem falavam. Eu era um passageiro pouco desejado. Estava ali como se fora mais uma peça de contrabando. 50 dólares de lucro. Era essa a única razão porque me levavam.

Tentei várias vezes meter conversa com o companheiro ao meu lado, ofereci-lhe um cigarro, falar da vida do mar, do futebol, mas as respostas eram sempre secas e curtas. Do meu lado direito, a linha preta das montanhas ia baixando até se juntar à linha infinita do oceano. A costa desapareceu de vista e viajávamos agora em mar aberto. O mar era um pouco mais agitado e a embarcação movia-se por todo lado. O céu estava nublado e viam-se algumas estrelas, mas não havia luar o que tornava a noite pesada e sinistra.
Tudo aconteceu tão rápido que não tive tempo para me preparar para a viagem. O meu impermeável estava dentro das malas na parte da frente do barco. Com toda a agitação da embarcação não me atrevi a ir buscá-lo. Passei a noite toda a levar com jorros de água no rosto e no corpo, mas n ão estava frio.

A noite foi passando, longa. Interminável. Minutos pareciam-me horas e horas um tempo infinito.
Depois veio a fuga à patrulha colombiana, em que o capitão liga o segundo motor e zarpa a toda a velocidade cortando as ondas agitadas. Seguiu-se uma tempestade, e outra mais tarde, cujos relâmpagos iluminavam a vastidão do mar como se fossem flashes disparados em frente dos meus olhos. Lembrei-me de "cape fear", da minha mãe, da tranquilidade das estradas, e do quanto já tinha alcançado nesta viagem. Queria aventura, pois aqui a tinha e em dose reforçada.

Avistamos terra ainda era de noite, mas não foi até ao amanhecer que o barco encalhou na praia a poucos metros da areia. Um grupo de pessoas esperavam-nos. Alguns curiosos, outros para ajudar a descarregar a mercadoria, e 3 deles, os compradores, em jeeps land rover antigos.
Passo a bicicleta e os alforges a uns jovens que entretanto se tinham metido ao mar. Já em terra meio azamboado, tiro a t-shirt e espremo o excesso de água voltando a vesti-la. Não havia tempo para mudar de roupa. Queria sair dali o mais depressa possível.
"La careterra, para onde?", perguntei.
Um jovem indica-me o caminho apontando para as marcas de rodados na lama seca de uma pastagem. Parecia que tinha desembarcado em África. Vastas pastagens com árvores de grande porte a dar sombra ao gado e às casas simples feitas de bambu e revestidas com barro. Os seus habitantes eram todos negros, descendentes dos escravos que povoam não só toda a costa atlântica da Colômbia como grande parte da costa da América central e caraíbas.
Momentos depois passam os jeeps carregados.

Segundo a informação do "capitão", a primeira aldeia seria Moñitos a 6 km da praia, aí passava a estrada alcatroada.
14 km depois entrava em Moñitos, para o alcatrão foram mais 7. Estava cansado. Não tinha água, dinheiro colombiano ou mapa. Tinha entrado ilegalmente no país e não fazia a mínima ideia de onde estava. Em Moñitos parei no centro da aldeia e pedi a alguém para que me enchesse a garrafa com água da torneira.
"Cartagena, está longe?". "Uuuuuh lejissimo", respondeu alguém. Um jovem que insistia em falar comigo em inglês desenhou-me um mapa da costa do atlântico num pedaço de papel assinalando todas as cidades até Cartagena. Por baixo de
Cartagena escreveu: 400 km. Foi o meu mapa até chegar a Cartagena.
Agradeci-lhe e parti.

Ainda fiz 62 km nessa manhã até à cidade de Lorica onde procurei um hotel. Um tanque blindado passeava pelas ruas da cidade. Procurei um restaurante onde tive uma introdução à culinária colombiana com uma "badera paisa" regressei ao hotel e às 4 da tarde estava a dormir.
Passei um dia em Lorica a recompor-me da viagem. Agora, que tudo passou, parece-me que não foi tão perigoso. Lembro-me da postura inalterada dos tripulantes (excepto na fuga à patrulha), como se fora apenas mais uma viagem na sua vida rotineira de contrabandistas. Mas para mim a realidade pareceu-me outra. Apeteceu-me dizer-lhes o quanto admirava a bravura do seu trabalho e o risco diário que corriam. Mas não disse. Aliás, o "perto de Cartagena" prometido pelo capitão foram 290km.

Pedalei ainda por 3 dias com a preocupação de não ter um carimbo no passaporte, mas as 2 únicas vezes que fui abordado pelos inúmeros postos de controlo (que parecem ser característicos nas estradas colombianas), os polícias estavam mais interessados na liga de futebol portuguesa, na minha catana enferrujada (motivo de risada geral) ou quantos km fazia por dia.
Amanhã chega a Verónica e começa uma nova etapa da viagem.
Espero que seja menos "agitada".

Nuno Brilhante
Em Cartagena

9.23.2007

A travessia para a Colômbia parte II (Panama)

Dia 4
Ilha de Carti para ilha de Playon chico.
A bordo do barco Purtugandi


Hoje foi um dia de viagem na horizontal. Mar calmo, dia cheio de sol e eu deitado na plataforma superior deste barco mercantil Kuna, com uma vista de 360 graus do mar azul turquesa das caraíbas. Passamos por dezenas de pequenas ilhas, muitas delas desertas, com areia branca e fina e alguns coqueiros. Verdadeiras ilhas de fantasia. Outras em contraste, super povoadas, cobertas com casebres de bambu.

O barco foi parando ao longo do dia para descarregar mercadoria, arroz, cerveja, farinha, redes, produtos enlatados, gasolina, tudo o que os habitantes das ilhas possam comprar, até o ocasional frigorífico ou televisor. O Purtugandi é literalmente um armazém flutuante. Compra por catálogo no mar. Digo isso porque grande parte das mercadorias são encomendadas previamente aos capitães dos muitos barcos que frequentam as 37 ilhas habitadas do arquipélago de San Blas. Os produtos são comprados na "zona libre" de Colon, livres de impostos e na sua maioria produtos baratos chineses e americanos.

Nalgumas ilhas mais pobres onde não há electricidade ou água potável e cujo único edifício que não é feito de bambu é a escola construída pelo governo central, a chegada do Purtugandi é um entretenimento assistido por muitos. Mulheres e jovens e crianças aglomeram-se em redor do cais à espera das mercadorias, os homens estão quase todos no mar à pesca nos seus cayocos (canoas feitas de um único tronco de árvore).
As mulheres Kuna parecem tomar conta dos negócios da ilha, verificam a mercadoria, transportam-na às costas, trocam facturas, pagam e fazem novas encomendas. Os jovens carregam o mais pesado, bidons de gasolina ou sacos de farinha.
Cada paragem pode levar algo entre 10 minutos a várias horas.

O barco atracou ao final da tarde em Playon Chico, uma outra ilha cerca da costa e ligada ao continente por uma ponte pedestre. Em terra firme encontrava-se a escola, uma igreja mórmon e a pista de aterragem. Voos diários ligam a cidade de Panamá com Playon Chico e algumas outras ilhas habitadas do arquipélago. Essencialmente para comprar lagostas e mariscos,e para transporte de passageiros, Kunas que decidiram viver no mundo latino e turistas que se alojam em resorts de "luxo" ("luxo" entenda-se como rústico, pois não há resorts tipo Cancun por estas bandas) em ilhas desabitadas.
Saio do barco para dar um passeio e conheço uns jovens Kuna com quem iria passar o resto da noite. Levaram-me a conhecer a ilha e falaram-me com entusiasmo acerca da cultura Kuna. Os Kuna são um povo orgulhoso e tenás. É o grupo indígena mais bem organizado no Panamá e o único (dizem os meus amigos) com representante legislativo. Governam a comarca de Kuna Yala com pouca interferência do governo central.

A maioria dos Kuna vive numa das 37 ilhas habitadas das 365 ilhas que existem ao longo da costa da comarca, entre Provenir e a fronteira da Colômbia.
A falta de estradas sempre os manteve mais isolados que outros grupos indígenas, e o barco é o meio de transporte usado entre as 49 comunidades que existem nas ilhas e ao longo da costa.
Cada comunidade tem um líder (cacique) que elegem como representante para o governo central, e que tem poder de decisão (por vezes arbitrário) na suas comunidades. Como me contou um dos jovens que foi multado em 5 balboas pelo Cacique por ter sido apanhado na cama com uma jovem de outra comunidade.
A noite prolongou-se terminando na casa de um deles. Um casebre em bambu onde algumas mulheres bordavam Molas (panos bordados que fazem parte do traje das mulheres Kuna)à luz de candeeiro a petróleo.






Dia 5
Playon Chico para Ilha "paraíso" (?)
A bordo do Purtugandi


Partimos lá pelas 8 horas para mais uma sessão de deambulação pelos paraísos perdidos das ilhas de San B las. Com cada ilha que visitava parecia mais fascinado com este povo. Um mundo à parte na América Central.
Hoje troquei de barco.
O barco Kuna onde seguia ia parar por 2 dias em Istupo.
Aqui nesta ilha que ainda não sei o nome, está atracado um outro barco que segue para puerto Obaldia amanhã, junto à fronteira com a Colômbia. Chegarão lá daqui a 2 ou 3 dias. Ainda não sabem. Os capitães dos barcos estavam de acordo, era melhor para mim. Pego na burra e nas malas todas e mudo de barco. O meu novo barco tem uma atmosfera muito diferente. Os tripulantes são todos de raça negra e mestiça, vindos de Colon, e andam nestas bandas no negócio do coco. Compram aos indígenas e vendem aos colombianos. A atmosfera do novo barco é menos simpática mas é compensada pela ilha onde passamos a noite. Um pequeno paraíso.






dia 6
Da ilha "paraíso" para ilha Ballena
A bordo do barco Colon


Amanheço na minha rede montada no porão. O barulho do motor a começar a trabalhar despertou-me. Ainda o sol não tinha nascido sobre a linha infinita do horizonte quando o barco deixou o cais e desliza nas águas escuras e calmas da baía.
Este pessoal era madrugador. Ia ser mais um longo dia de viagem no mar, mais longo do que eu jamais imaginara.
Este novo barco- ao contrário do Purtugandi - fazia poucas paragens. Navegava por entre ilhas, algumas delas autênticos postais paradisíacos, um monte de areia fina a brotar das águas azul turquesa, com alguns coqueiros plantados. Algumas delas eram usadas pelos narcotraficantes e contrabandistas colombianos, como eu iria presenciar bem de perto mais tarde.
Um dos artigos no estatuto autónomo da comarca de Kuna Yala, proíbe a marinha do Panamá e a DEA (drugs enforcement agency) Americana de patrulhar as suas águas, tornando a comarca numa espécie de "free zone" para contrabando. Existem portos policiais mas eles pouco fazem para controlar o contrabando.

A meio da manhã o barco ancorou ao largo da ilha de Ballena ( assim chamada pela sua forma que se parece com uma baleia), pois o cais era pouco profundo para atracar. Uma traineira colombiana encosta ao barco e inicia-se o longo e árduo trabalho de traslado de carga: cocos!
35.000 cocos foram passados e contados um por um do convés de um barco para o outro. Um processo supervisionado por ambos os capitães com um pedaço de cartão e caneta na mão, e que levou todo o dia, até ao entardecer.
Os cocos eram vendidos aos colombianos por 11 cêntimos de dólar. Os indígenas que subiam aos coqueiros recebiam ainda menos por unidade. Cocos de melhor qualidade do que na Colômbia (por terem a parte branca interior mais espessa), eram levados para esse país para fazer os mais diversos produtos.
Um trabalho árduo e pouco lucrativo que, segundo os marinheiros, estava em decadência. Os índios Kuna ja não querem cultivar as terras. Preferem dedicar-se à lucrativa pesca da lagosta ou ao narcotráfico.






Durante o dia iam entrando e saindo de ambas embarcacoes, diversas pessoas que chegavam em cayocos ou em pequenos barcos a motor. Um deles que se dizia "capitão" (e que eu supos ser da traineira colombiana) disse que ia para a Colômbia e que me levava por 50 dólares. Perguntei-lhe para onde, mas deu-me uma resposta vaga. Perto de Cartagena, disse. Se assim fosse ia poupar vários dias de viagem. E apesar de achar cara a viagem, iria ser mais barata do que se fosse via Puerto Obaldia.
Passo a bicicleta e malas para a traineira e pago ao capitão do Colon 5 dólares pelas 24 horas que passei a bordo.

Ao entardecer a traineira colombiana atracou no cais da ilha para passar a noite. Alguém me ofereceu jantar ( durante as viagens anteriores as refeicoes também estavam incluídas, normalmente peixe apanhado no dia com arroz). No cais estavam também outras pequenas embarcações e lanchas - quase todas de contrabando - e havia bastante agitação. Um marinheiro indica-me para colocar a burra e as malas no cais que o barco para a Colômbia ia partir.
Já não percebia nada! Então não ia partir amanhã? E não era na traineira cheia de cocos?!
Pouco depois apareceu o meu "capitão" a bordo de uma lancha com pouco mais de 2 metros de largura e cerca de 15 ou 20 de comprido, com 2 poderosos motores e carregada - nunca cheguei a saber de quê.
-"Passa as tuas coisas, entra. Vamos partir", disse.
Partir para a Colômbia durante a noite nesta coisa? Por mar alto?
Estava petrificado.
-" Sim, vamos. Para a Colômbia. Queres vir ou não?" perguntou em voz agitada como se de repente estivesse cheio de pressa. Não sabia o que fazer. Tinha que tomar uma decisão, e já! Olho para as outras pessoas que estavam a assistir à cena toda em busca de uma resposta. Um olhar afirmativo, alguma indicação de que estava a tomar a decisão certa. Mas nada, alguns riam-se, outros olhavam com ar apático e indiferente.
-"Tu queres vir para a Colômbia, certo? Vamos! I nsistia o capitão.
Ele tinha razão. Eu queria ir para a Colômbia e não podia perder uma semana em barcos que paravam em todas as ilhas ao longo do caminho. Tinha que estar em Cartagena no dia 24 e já me restavam poucos dias.
-Vamos! disse.
Coloquei a burra sobre a carga já coberta com um oleado e as minhas malas consegui de alguma forma colocá-las na parte da frente por debaixo do oleado. Deixamos o cais e o barco desapareceu na escuridão da noite.

Tinha acabado de entrar num barco de contrabando colombiano a caminho de lugar incerto e iria entrar ilegalmente no pa ís.
As 11 horas que se seguiram foram uma viagem alucinante que jamais irei esquecer.

Segue-se nos próximos dias o relato da terceira e última parte da travessia.

Nuno Brilhante
em Maria la Baja, Colômbia

9.20.2007

A travessia para a Colômbia. Parte I (Panamá)

Dia 1
Panamá City para Chepo, 68 km.

Apesar de ter deixado os alforjes feitos e postos na burra, pronto para partir, não consegui deixar a cidade antes das 10.30 da manha. Acordei com o nascer do sol, mas as indecisões mantinham-me colado à cama.
Ontem à noite, no bar do Hotel Ideal, e em jeito de despedida, bebi umas Balboas a mais na companhia do Lard, Ronald e do Bart. 3 ciclistas holandeses que tinha conhecido na estrada dias antes de chegar à capital. No bar estavam também um grupo de pescadores de atum portugueses. Estavam sempre ali. Há vários dias, à espera de embarcar. Havia também um indiano homem de negócios, um americano negro que passava o tempo a falar sozinho, meio louco, dizia que o governo Americano lhe tinha colocado um chip no corpo e que o perseguiam, e é claro as empregadas do bar, a Zoraida e a Mónica.
Já os conhecia a todos. Nos 5 dias que passei na cidade nos preparativos para a travessia, o bar do hotel Ideal, junto à piscina ( de água verde estagnada e cheia de peixes), era o ponto de encontro depois de qualquer actividade do dia. Era como se buscasse na companhia dos meus novos amigos, respostas às minhas duvidas e incertezas.
- Então Nuno, quando é que vais para a selva?, perguntavam-me os portugueses cada vez que me viam.
- Amanhã, respondia.
No dia seguinte as mesmas perguntas com as mesmas respostas.

Ia-me "enchendo" de confiança com o equipamento que ia comprando aos poucos. Era como se estivesse a preparar-me pela primeira vez para uma viagem de bicicleta.
Comprei mapas cartográficos da região do Darien, no instituto geográfico nacional, que apesar de serem dos melhores mapas disponíveis no país, não mostravam caminhos ou trilhos pala al ém de Yaviza - mas eles existem! Comprei também uma bússola, "zip ties" e fita "duk tape" (o melhor kit de reparação dos ciclistas!), cerca 20 metros de corda, e outras coisas que me pareciam necessárias. Afiei a minha catana ferrugenta que encontrei numa praia deserta semanas atrás, e comprei - pela primeira vez nas minhas viagens - comprimidos para a malária, uma vez que o Darien é das zonas mais infectadas de toda a América central.
Os Holandeses, que terminavam ali as suas 6 semanas de cicloturismo, ofereceram-me refeições em pacote que diziam "adventure food". Trouxeram-nas da Holanda e não as usaram, pareciam suficientes para uma semana. Tinha tudo. Tudo menos a decisão. Valia a pena o risco de tal travessia?

Esta manhã decidi seguir em frente ao mesmo ritmo que sempre pedalei nesta viagem, um dia de cada vez. Apesar de não o querer admitir, ja tinha decidido. Estava a atraiçoar os meus pró prios planos e sentia-me um cobarde. Um Judas em duas rodas.



Deixo a zona do "casco viejo" onde estava alojado e sigo pela marginal entrando na parte "americana" da cidade. Uma zona de arranha céus (a maioria de bancos internacionais, locais de lavagem de dinheiro, com pouca ou nenhuma interferência pela parte do governo do Panamá), centros comerciais, lojas de roupa de luxo, restaurantes japoneses e italianos, etc. Uma clonagem quase perfeita de uma cidade típica americana sem faltar a Mac Donalds e Burguer King.
Resultado de muitas décadas de "presença" americana durante o período que foram "donos" do canal do Panamá.

Sigo com direcção ao aeroporto internacional e pouco depois estou de novo na Pan-Americana, que segue para oriente no seu percurso final até Yaviza. O final das estradas na parte norte do continente americano. A estrada era plana e relativamente monótona, atravessando zonas de cultivo e o trafego pouco intenso.
Chego a Chepo a meio da tarde. O céu escuro e carregado dá-me a indicação de que não devo continuar mais por hoje. Aproxima-se uma tempestade tropical e há que buscar refúgio para a noite. Alojo-me numa pequena hospedagem em frente ao hospital por 5 dólares.

Chepo apesar de estar apenas a 60km da capital parece estar a um mundo de distância do caos da cidade de Panam á. Uma pequena e pacata cidade de cerca de 5000 habitantes, maioritariamente negros. Todas as portas e janelas parecem ter gradeamentos e a atmosfera geral não é das mais "simpáticas" que tenho encontrado, mas pretendo apenas passar a noite aqui.

Amanhã irei sair da estrada pan americana em El Llano e seguir por um desvio que me irá levar até à aldeia de pescadores de Carti, na costa das caraíbas. O caminho, segundo um polícia com quem falei hoje, "não está tra nsitável" pelas fortes chuvadas dos últimos dias. Esse caminho é a única opção terrestre que tenho de chegar à comarca de Kuna Yala na Costa do atlântico onde espero encontrar alguém que me leve de barco até puerto Obaldia, junto à fronteira com a Colômbia.

A tribo de Kuna Yala vive ao longo da costa das caraíbas entre Provenir e a fronteira da Colômbia.Com governo próprio, leis, e poder de decisão,os Kuna são os indígenas com maior autonomia de toda a América latina e ainda preservam os costumes e tradições dos seus ancestrais. Tinha abandonado a ideia de chegar a Yaviza, mas o caminho escolhido não era menos incerto e duvidoso.


Dia 2
De Chepo para algures na selva (km 22 El Llano-Carti), 42 km.


Deixei a hospedagem Mi Ranchito e fui tomar o pequeno almoço no restaurante chino junto ao hospital. Frango frito com arroz e café. Sigo para o centro da cidade para comprar algumas coisas que me faltavam: passas secas, bolachas, tabaco e 5 litros de água (7 no total, com 2 que já tinha). Antes de partir tomo um segundo pequeno almoço, guisado de carne com arroz e um café. No Panamá parece não há grande diferença entre pequeno almoço e almoço. O dono da farmácia ao lado mete conversa e indica-me que em 2 anos que ali vive, eu era o segundo ciclista que via. O outro tinha sido um japonês tempos atrá s.
Saio de Chepo e pedalo para oriente. A estrada estava vazia. O tráfego era mínimo. Apenas algumas carrinhas pick-up e o ocasional autocarro. Um senhor à beira da estrada tira-me uma foto discretamente com uma máquina fotográfica descartável. Saúdo-o com um sorriso amigável.

Foram 18 km de estrada boa e quase sempre plana até ao cruzamento de El Llano.
Lanço-me à brita com garras. Tinha 40 km pela frente até ao mar das caraíbas. O constante sobe e desce tornou-se mais acentuado com desníveis de 15% e 20%. A estrada parecia não se esforçar por contornar montes subindo desnecessariamente uma colina para voltar a descer de imediato. A paisagem de ambos os lados alternava entre selva e zonas de pastagem de vacas com a ocasional cabana no cimo de um monte. O único tráfego era de alguns (5 ou 6 o dia todo) pick-ups carregados de mercadorias e índios Kuna. Paravam ao meu lado e ofereciam boleia - a um preço é claro.
10 dólares. Recuso, mas era bom saber que caso nao pudesse continuar depois de Carti, poderia regressar de pick-up. Tê -lo-ia feito. A estrada de calhau rolado estava a tornar-se cada vez mais difícil, e parecia-me desnecessário ter que fazer a mesma estrada a uma média de 5 ou 7 km/h, duas vezes.

Subo aos 500 metros de altitude onde obtenho uma vista panorâmica da selva coberta de neblina com o mar das caraíbas para norte. Os ruídos da selva são intensos. Reconhecia apenas alguns, um deles, do inconfundível macaco hawley com um ruído semelhante ao de um felino. Bom lugar para acampar, mas decido seguir. 2 kms depois ao lado da estrada avisto uma clareira com uma plataforma em terra elevada. As vistas em redor eram ainda mais fantásticas. Empurro a bicicleta até ao topo com esforço e monto acampamento.
A chuva que tinha estado a cair com ligeireza durante a tarde, intensificou-se. Cozinho uma pasta com queijo e toucinho que os holandeses me tinham oferecido. 1000 calorias por porção, dizia no pacote. Ponho dois. Adormeço exausto com o som da bicharada da selva e dos constantes relâmpagos que iluminavam as águas do atlântico.
O lugar era perfeito para acampar. Tinha feito apenas 42 kms, e foi um dia bem duro, mas estava contente. Esta talvez foi uma escolha com menos aventura, mas mais sensata. O que interessava era que estava de novo na estrada e rumo à Colômbia!













Dia 3
De Algures na selva até á ilha de carti Suitupo, 13 km.


Ontem dormi mal. Os relâmpagos constantes da tempestade algures no mar assombraram (ou iluminaram) a tenda a noite toda. O som de um animal da selva com um cântico irritante e repetitivo entrava-me no ouvido como um sino de igreja desafinado, despertando-me a todo instante. Acordo com os primeiros tons de claridade. O céu estava escuro e cheio de nuvens. Preparo o pequeno almoço e saboreio um café, prolongadamente, observando a paisagem em meu redor. Selva por todos os lados. Não se viam vestígios da presença humana. uma pastagem, uma cabana, ou um poste de electricidade no caminho ao fundo. Para norte, o mar atlântico e as ilhas sob pupuladas dos índios kuna, que aquela dist ância não passavam de meros pontos negros no vasto oceano.

No meio desta paz e tranquilidade aproxima-se um helicóptero. Voa em círculos sobre o acampamento, suficientemente baixo para perceber que não era um helicóptero militar. Haviam Gringos lá dentro, turistas ricos, pensei. Voa mais baixo e vejo o piloto e passageiros a fazer sinais com os dedos e mãos. Não percebi se me queriam dizer que iam aterrar ou cair, ali mesmo. Os gestos eram violentos.
O monte onde estava não tinha mais de 100 metros quadrados. Fizeram sinal para me deitar sobre o barro, iam aterrar quer eu queira quer não!
O vento forte das hélices levanta a minha tenda pelo ar com as minhas coisas lá dentro, e cai no meio da mata, numa pequena ravina, espalhando todo o meu material por todos os lados.
- "Desculpa, foi uma emergência", disseram os tripulantes quando saíram. Eram 4 ingleses a trabalhar para a Discovery C hanel a fazer um "survivor´s show" no meio da selva dos Kuna Yala. Não pareciam muito preocupados com o facto de todo o meu material estar espalhado pela densa vegetação e depois de uma curta conversa, partiram a pé caminho abaixo em busca de um "spot" de trabalho.

Ponho a cafeteira ao lume e preparo um café ao piloto - "É mesmo isto que preciso", disse, com um sorriso.
O piloto, um senhor austríaco a viver no Panamá, contou-me que o "meu" acampamento era o único local em toda aquela vasta área onde podia aterrar, e que em Panamá City lhe tinham dado as coordenadas erradas e que passou demasiado tempo à procura deste lugar, a 8 milhas dali. Estava sem combustível suficiente para regressar.
Agarro na minha catana e começo a abrir caminho pela vegetação em busca do meu material. Levou-me mais de uma hora a recolher tudo, os pólos da tenda partiram com o deslocamento, e ainda agora não sei o que me falta.

Monto a burra e enfrento de novo as subidas cruéis. Pensei que iria ser um dia mais fácil e por estar no ponto mais alto do percurso seria quase sempre a descer dali até ao mar.Estava enganado. A estrada piora, e agora as subidas são tão inclinadas que as subo quase todas a empurrar. Contei 14 subidas, apenas as que tive que desmontar. Nenhuma com menos de 15% 20%, algumas provavelmente a 25% e mais. Faço apenas 13 km até ao rio. Levou-me 4 horas a fazê -lo. Foi duro, mas a partir de agora iria viajar na horizontal.

Uns índios kuna levam-me na sua canoa esculpida de um único tronco de madeira até a ilha de Suitupo numa viagem de 45 minutos. Esta viagem transportou-me para um mundo diferente. O mundo dos Kuna Yala. Um povo fascinante que ainda vive nas terras dos seus antepassados e que preservam grande parte dos seus costumes e tradições.

Procuro um lugar para dormir. O senhor Juan leva-me à casa da família Poras onde me alojo na sala dormindo na rede. A família dormiu essa noite na cozinha, deixaram-me a sós. A casa dos Poras era como quase todas as casas na ilha, construída em cana de bambu e tecto de colmo. A ilha era tão povoada que mal sobrava espaço para vegetação e caminhos. Dou um passeio pela ilha que não tinha mais de 800 metros de comprido por 600 de largura. Neste espaço diminuto vivem cerca de 2000 mil pessoas. Encontro de novo o senhor Juan que me leva a conhecer o cais. Tinha atracado um barco mercantil Kuna que partia amanhã para I stupo, lá longe pela costa leste da comarca de Kuna Yala, a meio caminho de Puerto Obaldia junto à fronteira colombiana, e o meu eventual próximo destino. Disseram-me que partiam pelas 8 da manhã. Estava com sorte.
2 dias de viagem por um preço irrisório de 9 dólares.
Em Istupo tinha que arranjar um novo barco que me levasse a Puerto Obaldia e daí outro para a Acandi, já na Colômbia e da í outro para Turbo, onde iniciavam as estradas de novo. Esse era o plano. Uma viagem de vários dias de barco com vários dias de espera em lugares incertos para fazer ligacões. Poderia levar uma semana, ou mais. O meu único receio era de não conseguir estar em Cartagena a tempo de receber a Verónica que vem pedalar comigo nas suas 3 semanas de cicloturismo na Colômbia.

Regresso à casa dos P oras. A ilha estava às escuras ( o gerador eléctrico que fornece electricidade à ilha já estava avariado há uns tempos), e a atmosfera parecia ter sido tirada de um filme do tempo dos descobrimentos. Deito-me na rede com luz de vela e adormeço a ouvir as vozes de uma língua estranha vindas das casas vizinhas. Os barracos estavam construídos tão próximos uns dos outros que se ouvia tudo o que os vizinhos falavam. Era como se toda a ilha fizesse parte de uma gigantesca família.



















Segue-se nos próximos dias a segunda parte da travessia.

Nuno Brilhante
Em Lorica, Colômbia.

9.14.2007

Momentos de decisão...(Panama)

Os relatos da minha passagem pela Costa rica e Panamá virão numa fase posterior da viagem. Não è pela falta de histórias ou bons momentos para contar, mas pela falta de tempo, pela preguiça mental que se apoderou de mim nos últimos dias e também por estar a ponto de tomar decisões importantes em relação à viagem.

Encontro-me de momento na cidade de Panamá e ainda sem uma decisão concreta em relação às próximas pedaladas a dar. Existem várias hipóteses de travessia para a Colômbia. Não existem estradas nem transportes terrestres ou marítimos regulares entre os dois países.

Opção A: a opção mais rápida e eficiente, mas também a mais fácil, será voar para Cartagena.
Opção B: a mais turística, seria viajar em barco à vela através das ilhas de San Blas numa espécie de "mini-cruzeiro" de 4 a 5 dias.
Opção C: será viajar à "boleia" de barcos de carga, ou de pescadores ao longo da costa das Caraíbas via San Blas, Albadia e Turbo (Colômbia). De turbo seguiria de bicla até Cartagena.
Opção D: será um percurso idêntico mas pelo lado do pac ífico, via La Palma e sabe-se lá por onde no lado colombiano.
Opção E: será atravessar o "Darien Gap".

A estrada Pan-Americana não atravessa do Panamá para a Colômbia. Termina no meio da selva numa cidade chamada Yaviza, no meio da vasta zona selvagem do Darien, iniciando 80km depois já em território colombiano. Esta "falha" de transporte terrestre entre a América do norte e a América do sul, é conhecida como o " Tampon del Darien", ou "Darien Gap".
Yaviza é , literalmente, o final das estradas.

Nos próximos blogs segue-se um relato diário da minha travessia (seja ela por onde for), entre a cidade do Panamá e a cidade de Cartagena (Colômbia).


Nuno Brilhante
Em Panamá City.

9.04.2007

"The road less travelled" (Nicaragua)

A chegada da Teresa coincidiu com a partida do Jeff. Viajamos juntos por 4 países e custou-me vê-lo partir. Mas tínhamos planos diferentes para as próximas semanas. Ainda faltam percorrer cerca de 10.000 km de estrada pan -americana e vamos ambos para a terra do fogo. provavelmente os nossos destinos cruzar-se-ao de novo lá mais para sul.

A Teresa cansada de esperar pela sua burra perdida algures no espaço aéreo entre Lisboa, Newark e San José, decidiu vir ao meu encontro e comprar uma bicicleta nova em Granada. Com a escolha limitada às marcas nacionais,Raly USA, Linx ou Toby Trek a escolha não foi difícil. A Teresa optou por uma linx "desierto" azul prateada por apenas 1100 cordobas. Cassete e mudanças trocadas por shimano, um suporte traseiro e uns "cornos" no guiador e o preço subiu para 1800 cordobas. Uns meros 70 euros. Baptizamo-la de Toña, uma apologia à cerveja nacional e à condução que proporcionava.

A nossa primeira etapa era chegar a Omepete ( 80km de granada com uma travessia de barco desde San Jorge). Uma ilha no lago Nicarágua que o meu guia de viagens descrevia como "jóia ecológica". A maior ilha do mundo- isto é, num lago de água doce- em forma de 8 e com um vulcão a cada lado. O vulcão Maderas a sul e o vulcão Conception na parte norte, que se elevava 1610 metros das águas do lago num cone quase perfeito.

Saímos da pan-americana por uma estrada secundária que terminava junto ao lago para reaparecer 25 km mais a sul. A praia era a estrada. Encostamos à margem do lago e seguimos sobre a areia enrijecida com as ondas a bater nas rodas.
Uma chegada pontual ao porto de San Jorge e estávamos a bordo do ferry para a ilha a contemplar o vulcão à distância ou ocupados numa busca furtiva de observar um tubarão.

O lago Nicarágua é o décimo maior lago de água doce do mundo, 177 km de comprimento e 58 km de largura. Nas suas águas habitam tubarões que foram encurralados quando a baía do pacífico se separou do oceano com a subida da crosta terrestre formando o lago, e adaptaram-se lentamente com a transformação das águas de salgadas para doce.

Apesar da ilha merecer mais tempo de visita, passamos apenas uma noite nela. Há apenas 2 barcos semanais da ilha para San Carlos, o porto fronteiriço na margem sudeste do lago, e perder um implicava 3 dias de espera pelo próximo.
O barco fazia 2 paragens na margem leste do lago. A primeira no porto de Morritos (o início das nossas próximas pedaladas incógnitas) e outra em puerto Miguelito.
Essa parte da Nicarágua estava fora dos roteiros turísticos, dos guias de viagem ou das paisagens de postal. Um bom indicativo.

O barco saiu já de noite, cheio de turistas, locais e carga. Peixe, bananas e outras cenas que os locais transportavam e que pareciam suficientes para sobreviver um inverno nuclear.
As nossas burras ficaram para o fim, depois dos carregadores em tronco nu musculados, e suados terem carregado o que me pareceu ser metade da produção de bananas da ilha, cachos e folhas incluídas.

O barco deslizava pelas águas escuras ao ritmo da vida por estas bandas, atracando com ligeireza em Puerto Morritos já pela noite dentro. O ar da noite era espesso e abafado. Apenas alguns locais desembarcaram, nós e as burras, ao olhar incrédulo dos turistas confusos com as nossas intenções. Afinal de contas Puerto Morrito não vinha no Lonely Planet. Porque desembarcar aqui nesta pequena aldeia perdida no meio da escuridão desta vasta área inexplorada (pelo turismo) da parte leste da Nicarágua? Era mesmo essa a nossa intenção.

Em Omepete quando questionamos os locais acerca dessa parte do lago, pouca informação obtivemos. A maioria nunca estiveram lá, no entanto estavam apenas a 5 horas de barco.
"A estrada é má" disse um, "péssima" disse outro. "Pode mesmo estar inundada nesta altura do ano". Porque não íamos de barco até San José como todos os outros turistas?

Preocupava-me pela Teresa e pela sua Toña. Estávamos a viajar juntos apenas há 2 dias e ainda não a conhecia o suficiente, além de que a sua bicicleta estava a dar alguns problemas.
Como estava enganado!
Nenhum outro companheiro nesta viagem me mostrou tanta determinação e "adaptabilidade" às circunstâncias de viajar em duas rodas.

A aldeia -para nossa surpresa- estava "cheia" de vida àquela hora da noite. O som da algazarra das rãs e sapos elevava-se como que em desafio ao som da música vinda de um bar cujos únicos clientes eram 4 pessoas sentadas em redor de uma mesa cheia de garrafas de Toña.
Fomos abordados por 2 polícias que nos questionaram acerca das nossas intenções. Registaram num pedaço solto de papel, à luz do meu frontal, os dados dos passaportes. Nunca viemos a saber porquê.

Alojamo-nos na "hospedaje" Jimenez. Uma suave introdução ao alojamento que nos esperava por estas bandas. Um quarto pequeno (onde enfiamos as burras) com ar de limpo que partilhamos com a população residente de mosquitos e baratas. O banho à "Indiana" ficava ao fundo de um corredor sem luz. No centro do compartimento escuro, um balde com um pequeno recipiente de plástico a boiar na água - do lago. O chuveiro.
Pagamos 3 euros pelas "comodidades".

O amanhecer revelou um dia húmido mas cheio de sol dissipando a neblina matinal e o ar inóspito da noite anterior. Tomamos como pequeno almoço os cereais que a Teresa trouxe de Portugal (aqui também se vendem!), seguido de um segundo pequeno almoço - como se tornou habitual - huevos com gallo pinto (arroz com feijão) queijo fresco e café.

Tentamos mais uma vez afinar - sem sucesso - os travões da Toña, numa das suas "birras" matinais. Um rapaz de alicate na mão foi a solução.
Fez-me lembrar uma das minhas viagem à Índia a "bordo" de uma moto Royal Enfield, dos seus constantes problemas de mecânica, e de como qualquer indiano de martelo na mão se intitulava de "mecânico".

Fizemo-nos à estrada.

Os primeiros 15 km desde Morrito até a bifurcação com a estrada "principal" não foram muito diferentes do que já estava habituado na Nicarágua.
Estradas de saibro ou brita solta, transformando-se em calhau rolado junto as linhas de água, cortando a paisagem sem se esforçar por contornar montes, com empenos de 15% e 20%.

Depois de várias paragens para atender as birras da Toña: porcas que não dão aperto, calços de travão perdidos, mudanças que não entram, etc, chegamos à estrada principal que liga toda esta vasta região leste do país.
2 estradas de saibro numa região com uma superfície maior que o Alentejo. Uma de Juigapa para Rama, a leste, e outra para sul até San Carlos.
A estrada era mais ampla, quase sempre plana, mas muito mais degradada. Afinal a estrada "má" e "péssima" sempre existia.

Nicarágua é um pais muito pobre, mas por estas bandas a pobreza tem outros olhos. Está em harmonia com a terra.
Cabanas de madeira com tecto de colmo ao longo da estrada, cujos residentes partilham o espaço com os animais domésticos, vacas, galinhas, porcos, patos. E os menos domésticos, como papagaios, macacos ou iguanas. No meio, entre todos, os cães, esfomeados, doentes e vadios. Desafortunados por nascer nesta parte do planeta.

Da intimidade de um lar vinham olhares curiosos, por vezes incrédulos. Um "hola" em tom de pergunta. Uma travagem. Um pé no chão. Um olhar com um sorriso. Troca de impressões e um dedo de conversa.
É esta a grande vantagem de viajar em bicicleta: parar, sentir, cheirar, conversar a qualquer instante.
A sensação de "consciencialização" é imediata!

À tarde preparamo-nos para uma noite incerta. Enchemos as garrafas com água do poço de alguém e vegetais com cheiro a terra comprados numa "tienda" qualquer à beira da estrada.
Chegamos a El Tuli já o sol se tinha posto em lugar incerto num horizonte escuro e carregado de nuvens.
As chuvas tropicais vieram tarde nesse dia, deixaram-nos pedalar durante todo o dia.

Não foi preciso acampar.
Os donos de uma mercearia tinham construído em forma ordenada 3 quartos no quintal das traseiras, isto é, partilhar a noite com a bicharada doméstica. Mas fizeram-no, não a pensar nos turistas mas nos nicaraguenses que visitam a aldeia nas festividades anuais.
A casa não diferia muito das que tínhamos visto ao longo do dia, com uma diferença: era construída em cimento. Sólida.

O banho (de bidão) entre umas tábuas debaixo de uma árvore de manga, e do outro lado do quintal, passando o curral do porco, a casa de banho. O tradicional buraco na terra com uma plataforma de madeira. Pedaços de jornal espetados num prego ferrugento. Uma casa de banho como tantas outras por esta região, deferindo apenas num pequeno pormenor. Não havia um, mas dois buracos na plataforma de madeira. Um ao lado do outro. Uma verdadeira incógnita. Será que ocorreu aos donos que os seus hospedes gostariam de ir a casa de banho aos pares? Ou seria para acomodar hospedes e membros da extensa família ao mesmo tempo?

San Carlos é um porto quente e pantanoso na ponta sudeste do lago Nicarágua junto ao rio San Juan. Daqui partem barcos para a costa das caraíbas através do rio San Juan e também para los Chiles , na Costa Rica.
Não há muito para ver ou fazer em San Carlos, mas depois de 2 dias aos solavancos pela Nicarágua "nua e crua" a cidade pareceu-nos cheia de vida e até me atrevo a dizer, moderna.

Uma viagem de barco de uma hora pelo rio Frio e entravamos na Costa Rica. O conta quilómetros tinha passado essa tarde a marca dos 20.000 km. Esta foi a primeira fronteira que passei para sul e que entrei num país mais rico...

As diferenças eram enormes. Estradas alcatroadas em excelente estado (se bem que estreitas e sem bermas), supermercados com produtos importados, hotéis sem cortes (diários) de água ou luz e cafés com máquina de expresso!
E verde, muito verde. Um verde luxuriante que quase que intoxica.
Bem vindo à capital mundial do eco-turismo.

Eco-turistas (principalmente americanos) adoram a costa rica. Provavelmente (era) um dos países mais seguros de toda a América central. As forcas armadas foram abolidas depois da guerra civil de 1948 e o país tem evitado as ditaduras e grupos insurgentes que tanto tem afectado a vida nos países vizinhos. Os "Ticos" foram rápidos a perceber os benefícios da preservação da natureza, e de momento 27% da superfície do pais è área protegida.
O que quase que garante a um profissional citadino de Nova York ou Lisboa nas suas férias de uma ou 2 semanas, ver um macaco ou um tucano no seu habitat natural, por vezes sem ter que sair da varanda do quarto do resort.

O problemas de tudo isto, para nós vagabundos em duas rodas, é que a Costa Rica é cara. Muito mais cara que os países vizinhos. Segundo o meu índex da pan-americana (pendente da patente e ponto COM), uma coca-cola em território Tico custa 3 vezes mais do que em território Nica.

Passamos a nossa primeira noite na Costa Rica em Los Chiles e, no dia seguinte, iniciamos o nosso trajecto rumo a San José.
Dentro de vários dias chegava à capital o (meu primo) Pedro Pedrosa. O plano seria seguirmos os 3 juntos para o Panamá. A Teresa e o Pedro regressariam a San José no final de Agosto e eu seguiria para leste rumo à capital do Panamá, onde teria que tomar a decisão mais difícil de toda a viagem: Darien? Ou não!
Mas mais acerca disso mais tarde.

Pelo caminho para San José, a Teresa iria fazer um último teste à sua problemática burra e a sua determinação em triunfar as cruéis "trepadas" da Costa Rica. Não consigo imaginar um outro nome tão apropriado para as subidas na Costa Rica, como o utilizado pelos locais: "trepada".
Subidas com 12% e 15% ininterruptos km após km, com partes a 20%. Do mais durinho até ao momento. A meio da subida para a meseta central, um descanso bem merecido na idílica laguna de Hule. Um oásis de paz neste país cheio de turismo de massas. Mais um dia de "trepada", e depois o descanso. O downhill para San José.

Tinha deixado a Nicarágua há poucos dias, mas já estava desejoso de um dia lá voltar. Nicarágua é um daqueles países que deixa uma pessoa insatisfeita.
Como um outro ciclo-turista que conheci na Pan-Americana me descreveu:
"cumplicidade ininteligível que arde em saudade".
Ruben Dario com certeza não discordaria...

Nuno Brilhante Pedrosa
Em Chitrè, Panamá.