10.03.2006

A chegada ao Alentejo (Canada&EUA)

Dia 64
km 4369


Essa manha tinha acordado, indeciso, sinal de que o dia me iria correr mal. Não conseguia decidir se devia continuar , ou esperar mais um dia, a ver se o tempo melhorava. Olho pela janela do quarto com 44 camas (sim, 44!) do Whistlers Hostel,
situado na encosta de uma das montanhas que rodeia Jasper, a uns tortuosos 7 km "uphill" da cidade. O dia estava escuro e chuvoso, com nuvens baixas e espessas, criando uma humidade incomfortável. O tempo não deixava ver montanhas nenhumas, mas já estava em Jasper há 4 dias e alem disso a Danina tinha arranjado uma boleia nesse dia com 2 turistas canadenses, até Banff. Local onde tinha-mos combinado nos encontrar de novo, dai a 3 dias. Pus o equipamento de chuva e parti meio contrariado, pela Icefield Parkway Road (highway 93), que as brochuras turísticas reclamam ser a estrada mais bonita de toda a América do norte. Os 44 dólares que me cobraram de portagem a entrada da estrada, ( 8 dólares por dia, incluindo os 4 que passei em Jasper, mais a famosa taxa canadense), deixaram-me ainda mais desanimado. Com aquele tempo a estrada era igual a qualquer estrada canadense num dia de chuva. A tarde a chuva intensificou-se e decidi acampar fazendo apenas uma etapa de 70 km.

Na manha seguinte acordei com um sol radiante que iria durar o resto dos dias que iria passar no Canada. A diferença da paisagem com o Céu limpo, era abismal. Gigantescas montanhas de ambos os lados, cobertas de neve e glaciares, lagos alpinos, cujos tons de verde iam variando ao longo do dia. A paisagem era demasiado bonita para descrever. Cada curva mostrava uma paisagem mais bonita do que a anterior. Foram 300 km de um gigantesco desfile de beleza natural. A Icefields Parkway Road atravessa o coração das Rocky Mountains, onde quase se sente o seu pulsar, levando-me o mais próximo possível dos seus cúmes sem sair do conforto da estrada. São 300 km consecutivos de património mundial declarado pela UNESCO. Fiz 3 passes consideráveis neste percurso. Um a 1890m, outro 2049m, e outro a 2092m. O ataque ao primeiro passe foi bastante progressivo, começando em Jasper a 1000 metros de altitude e subindo lentamente 500 metros em 70 km. Fiz a subida ao passe no dia
seguinte com um ataque final de 10 km a 8%. O Downhill e muito mais acentuado e espetacular, permitindo ver a estrada entrelaçada pelo enorme vale. Mais um passe no mesmo dia, o Sunwapta passe,acumulando 1290 metros de desnivel, e fazendo 110 km em 6.11h a uma media de 17.8 km/h, montando acampamento a 1608 metros, junto ao rio Mistaya com uma das melhores vistas da viagem ate ao momento.

O terceiro dia foi o mais duro desta etapa, apesar de ter feito apenas 897 metros de desnivel acumulado, fiz 134 km em 6.44h e com o ataque ao ultimo passe (Bow), o mais alto ate ao momento a 2092 metros. Os últimos 63 km desde Lake Louise a Banff foram feitos em apenas 2.15h a uma media superior a 30 km/h, com a ajuda de um fantástico vento forte e uma excelente estrada com um Downhill bastante ligeiro. Cheguei a Banff, sábado a noite, como combinado com a Danina, a tempo de ir celebrar a vida nocturna da cidade, que e conhecida em todas as Rocky Mountains. Começando o jantar com um aceitável vinho canadense e terminado pela noite dentro com shots de bebidas
'desconhecidas' no "Hoo Doo's", uma das discos locais. 4 dias depois, completamente curado da ressaca ( foi a primeira noite que exagerei no consumo de álcool, desde que sai de Portugal), parti de novo pela estrada nacional 93, despedindo-me da Danina com a promessa de nos voltar-mos a ver algures nos Estados Unidos. A estrada 93 segue para sul atravessando o parque nacional de Kootney, parte dele destruído por um fogo recente. Fiz uma etapa pequena nesse dia, apenas 57.6 km, acampando de borla num parque de campismo já fechado ( uma das vantagens de viajar fora de estação), pouco depois do passe de Vermillion (1651 metros), um das dezenas de passes que atravessa o "Continental Divide", a linha de separação das águas do continente americano.

As águas originando a oeste desta cadeia de montanhas vão desaguar ao pacifico, e as originadas a este vão desaguar ao Atlântico. Irei atravessar essa "linha" inúmeras vezes ao longo da minha viagem. A primeira passagem foi logo no inicio, no árctico, nas 'Richardson Mountains', na 'Dempster highway'. Parte do canada e nos Estados Unidos, o continental divide e feito através das Rocky Mountains. E para os mais aventureiros e aficcionados a BTT, e possível seguir o "continental divide", quase sempre "Off Road", desde Banff, no Canada, ate El Paso, na fronteira Mexicana. Um bom programa para a A2Z !
No dia seguinte a EN93 tinha uma surpresa para mim. O Downhill do Sinclar pass (1486) revelou uma paisagem bastante diferente, pequenas colinas com floresta mista, exibindo as bonitas corres do outono, desci cerca de 600 metros e as temperaturas subiram para uns agradáveis 20/25 graus ao sol do meio dia. Tinha entrado nos vales populosos junto as Rocky Mountains com um micro clima onde os outonos amenos são mais prolongados. Neste vasto pais, o segundo maior do mundo, a seguir a Rússia, mas com pouco mais habitantes do que a cidade do México, 90% da população vive num "cinturão" de cerca de 300 km a norte do paralelo 49, isto e , a fronteira dos estados unidos. Desde Vancouver no pacifico ate as províncias francofonas do Atlântico. Era este 'cinturão' humano que eu iria atravessar nos próximo 4 dias ate a fronteira Americana. Estava cerca de 180 km da fronteira, quando a corrente rebentou, e obrigou-me a deslocar-me a pouco agradável cidade de Cranbrooks. Aproveitei para das uma revisão a bicicleta, mudando os calços dos travões de traz,
alinhando as rodas, e mudando a corrente e a cassete.
2 dias depois estava na estrada 93 com Direcção fronteira...

Com a aproximação da fronteira, aumentaram os pensamentos negativos; e se não me deixassem entrar? teria que ir ate Vancouver em bicicleta, e apanhar um avião para o México, arruinado todos os planos de viagem. Tinha começado por decidir no dia anterior, qual seria o melhor visual a usar. Desde o 11 de Setembro o governo americano tinha-se empenhado na construção de um pais fortaleza, imune a qualquer tipo de penetração suspeita, incluindo extra-terrentres e ciclistas. E tinha ouvido as mais variadas historias de situações com os guardas fronteiriços, os quais ,
independentemente do tipo de visto no passaporte, tinham a autoridade absoluta de fazer o que lhes der na gana.. Eu tinha escolhido uma fronteira junto as Rocky Mountains pouco movimentada, mas o pouco trafico por vezes, faz com que os oficiais tenham mais tempo para implicar com casa individuo.A minha preocupação era a barba.
tinha 3 opções: ou deixava a barba como estava, mas poderia ser suspeito de pertencer a algum grupo terrorista árabe. Outra opção seria cortar a barba, mas deixar o bigode, possibilidade que pus logo de parte por dar indícios de relatividade ao Sr Bashar. A ultima opção, seria fazer a barba, mas isso expunha a minha cara alongada e magra, que eu toda a vida me confrontei com a existência, das minhas fortes descendências mouras. Provavelmente seria confundido com algum terrorista marroquino a viajar com passaporte português falso.
Optei pela ultima, pois pelo menos tinha a garantia de que o passaporte não era falso. Tinha-o tirado dias antes de partir no governo civil de Leiria, exclusivamente para a minha passagem pelos estados unidos. O anterior ainda era valido ate 2009, mas como foi escrito a mão por uma funcionaria do cônsul português em Atenas, na Grécia, numa situação de urgência, anos atrás, e não seria valido ao abrigo do novo "waiver program" americano. O "waiver program" oferece vistos gratuitos por 90 dias aos membros de um "clube de elite" de países amigos e 'bonzinhos', ao qual Portugal ingressou recentemente. Todos os outros cidadãos deste planeta, tem que fazer bicha num dos locais de maior risco a atentados terroristas: as embaixadasamericanas.
O trafico nesta parte da EN 93 era muito semelhante a Klondike highway, apenas com algum trafico local e os ocasionais grupos de motards em "road trips", nas suas barulhentas Harleys. O edifício da duana era novinho em folha, havia 3 carros a minha frente que atravessaram com relativa facilidade.

Chegou a minha vez:
-Hi
-Hi, respondi.
-How are you today?
-I'm fine.And how are you?
"how are you" e "have a nice day" são duas expressões no inglês americano que me irritam um pouco pela falta de genuinidade das pessoas quando as prenunciam. Ouso-as a todo o momento em qualquer situação, dezenas de vezes por dia. Imagino o numero de vezes que cada americano as pronunciam por dia, multiplicando por 300 milhões e em uni soro, seria o suficiente para criar uma avalanche numa montanha.
-So, where are you going today?
Apeteceu-me responder que "today", de bicicleta, não ia mais longe do que a próxima floresta e montar a tenda. Mas o oficial, que ate era bastante cordial, informou-me que por já ter estado nos estados unidos (Seattle, no inicio da viagem), e de ter saído sem levar carimbo, estava a reentrar com o mesmo visto que expirava daqui a 25 dias, o que não seria o suficiente para atravessar os estados unidos em bicicleta.
-por favor, encoste a bicicleta, e dirija-se aquele escritório.
-Eu sabia!!!
nunca devia ter feito a barba...
Vão começar os interrogatório e as revisões das malas, sem comer, beber, ou poder telefonar ao consulado português, a explicar que são apenas um cidadão português, a fazer 25000 quilómetros em bicicleta pelo continente americano.
E a garrafa de gasolina do fogão? e o spay anti-ursos? e os painéis solares que o meu primo pedro me ofereceu? e a bandeira portuguesa que a minha irmã pôs nas malas?
sei la! qualquer coisa pode ser suspeito....
Ainda tenho recordações frescas da minha travessia para Israel em bicicleta no ano 2000, pela "King Hussein Bridge" aonde me deixaram apenas em cuecas e t-shirt durante tempos num compartimento fechado ate que as autoridades se convencessem que a única razão porque andava no médio oriente de bicicleta era por puro turismo de lazer. Mas isto não era o médio oriente, Tao pouco guantanamo bay.
Dentro do moderno edifício com decorações um pouco bizarras ( alem da foto de George Bush, tinham também uma membrana de baleia embalsamada e a pele de um animal que não consegui identificar),onde o numero de computadores era de longe superior ao do numero de funcionarios. Um deles, o que não estava a ler o jornal, bombardeou-me com as habituais perguntas de alfandega, e mais algumas que eu achei um pouco fora de contexto, como: há montanhas em Portugal? e como intencionáva atravessar o canal do Panamá? Explicou-me que o "waiver program" não permitia extenções de vistos, mas que
devido a minha situação, iria fazer uma excepção, mais uma vez provando a sua autoridade.
Pede-me 7 dólares, que eu fiquei sem saber se eram para o papel que eu preenchi ou para a tinta do carimbo, e disse:- have a nice day A partir daquele momento fiquei a pensar que a razão pela qual os americanos repetem desnecessariamente e de uma forma quase religiosa, "have a nice day", e por acreditarem que a repetição da frase a transforma em realidade; para mim, nesse dia, funcionou.
Peguei na "burra" e zarpei para sul, pedalando ate ao anoitecer. Tinha entrado nos estados unidos da América. Mas o engraçado foi que pareceu-me que entrei no Alentejo....

A estrada deslisava por entre colinas de feno amareladas, calor e ar seco, e bastava trocar os pinheiros por chaparros e estava a entrar no Alentejo... observo o mapa e reparo que tinha feito mal os cálculos. Ainda faltavam 30 km ate Whitefish. Claro, a partir de hoje as distancias são em milhas. Montana tem nomes engraçados, a começar pela cidade fronteiriça de 'Eureka', 'Yaak', 'Paradise', Pleasant Valley', 'Pompey's Pillar',etc... mas o meu favorito e: 'going to the sun road' que de facto não vai para o sol, mas sim, para o 'International peace park'. Amanha vou dar um passeio por la, a ver se sinto alguma "paz" do trafico da cidade...

Nuno Brilhante Pedrosa
em Whitefish, Montana, EUA.

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