4.09.2008

De Trujillo a Ayacucho atravès da Cordillera Blanca (Peru)


Jeff no parque nacional Huascaran


Deserto de Sechura

Depois de 3 semanas parados em Trujillo, era um prazer estar de novo na estrada. Sentir o asfalto desfocado debaixo dos pedais, o ar quente e seco, a paisagem enfadonha do deserto em nosso redor e o céu de um azul acinzentado pela violência do sol do meio dia.
O Lucho acompanhou-nos na sua bicicleta até à saída da cidade. Quando nos despedimos já estávamos circundados pela vasta massa de dunas que formam o deserto de Sechura a sul de Trujillo. O mundo vazio à nossa volta era de um amarelo quase sufocante. Km após km de dunas de areia, com o horizonte a perder de vista.


Panamericana a sul de Trujillo


Mas nesta aparente terra árida e estéril, também há vida. Vida criada pelo homem na sua continua e irrevogável devassidão para dominar a natureza. Por vezes, no horizonte avistávamos, como se fosse uma miragem, oásis de um verde intenso. O verde da submissão da natureza. Cultivos de cana de açúcar, espargos e alcachofras, opunham-se fortemente aos infindáveis tons de terra seca do deserto. Estas plantações pertencem a multinacionais estrangeiras e são irrigadas com as águas do rio Santa através de um mega-projecto do governo, que lentamente, vão conquistando o deserto.

Segundo indicações do Lucho, ao km 487 da Panamaricana, um desvio por uma estrada privada levar-nos-ia ao Rio Santa, evitando pedalar para sul até à sua foz e poupando cerca de 100 km. A estada privada era uma das estradas de acesso as instalações hidroeléctricas de Chavimochic. Um vasto multi-projecto de produção de electricidade e de irrigação do deserto usando as águas do rio Santa.

Viajávamos de novo sós, ao nosso próprio ritmo e alento. O Jeff tinha partido à nossa frente sozinho. "Vemo-nos mais tarde, talvez em Huaraz", dissemos.
O trafico era quase inexistente. Sem o ruído e o fumo dos camiões da Panamericana, podíamos agora contemplar o deserto na sua beleza absoluta. Chegamos às margens do rio Santa, uma interrupção de verde nesta vasta paisagem árida, um dos vários rios que descem dos Andes e dão vida a este deserto costeiro.





Callejón de Huaylas

Nos dias que se seguiram pedalamos cerca de 250 km sempre junto a esse rio, quase de "fio a pavio", desde perto da sua foz, até Huaraz, a 80 km da nascente no lago de Conacocha, a 4113m de altitude.

Acampamos uma ultima noite no deserto. O silencio era absoluto, quase doloroso.
Depois de 50 km do caminho privado, chegamos à estrada principal, cujo alcatrão termina na aldeia de Chuquicara. A partir dai, e durante os próximos 5 dias, pedalamos por uma estrada que apesar das suaves inclinações, estava de tal forma deteriorada que nos impedia de avançar a bom ritmo. Mas não era só a estrada que nos impedia de fazer bom progresso, a paisagem era de um esplendor tal que nos obrigava a parar frequentemente para a contemplarmos. Pedalamos durante dias "dentro" de um enorme canyon.












Na primeira parte, a mais bonita, a estrada acompanhava o leito do rio com as imponentes paredes do canyon em ambos os lados. Na parte superior do canyon, conhecido como Canyon del pato, a estrada sobe a encosta Oeste, separando-se do rio, transformando-o num fio de agua ao fundo do enorme desfiladeiro. Nesta parte do Canyon del Pato a cordilheira branca e a Cordilheira Negra estão tão próximas que quase se "beijam".

A dificuldade do relevo obriga a estrada a perfurar as montanhas, atravessando não menos que 35 túneis. Apesar da luz natural, esses túneis apresentaram por vezes, desafios para as nossas bicicletas.
Ao 5 dia as cordilheiras começam a distanciar-se uma da outra dando lugar ao fértil vale do rio Santa, já acima dos 2000 metros de altitude. A 25 km de Caraz, começa de novo o alcatrão e também os casarìos e aldeias. Homens, mulheres, velhos e novos, todos parecem trabalhar as terras férteis do vale. O clima hostil das montanhas e o sol impiedoso deixam as suas marcas nos rostos dos camponeses, as suas faces estão queimadas pelo sol e o frio.

Huaraz

Huaraz è a capital Andina dos desportos de aventura. Os terraços da desorganizada e feia cidade revelam as vistas panorâmicas que a dominam: a Cordillera Blanca, uma das cadeias montanhosas mais impressionantes do planeta, com os seus 22 picos acima dos 6000 metros de altitude.
A cidade foi quase totalmente destruída pelo terramoto de 1970, mas ressurgiu dos escombros com rapidez, para se tornar na "metrópole" de desportos de adrenalina que è hoje. Huaraz não ganhará, com certeza, nenhum concurso de beleza de aldeias Andinas, mas è um excelente lugar para substituir qualquer peça de equipamento, por vezes tão difícil de encontrar noutras partes da América Latina, e para planear as próximas pedaladas a dar.



Aqui terminava mais uma etapa de ciclismo para a Joana. Acompanhei-a à capital, Lima numa longa viagem de 8 horas em autocarro. No relance de um curto dia visitamos o centro histórico da cidade e o parque de fontes luminosas "percurso da agua", onde assistimos a um fantástico espectáculo de luz som e cor.




Aproveitei também para comprar uma nova maquina fotográfica ( a que tinha avariou-se de forma irreparável, algures no deserto de Sechura), e ambos deixamos a cidade nessa mesma noite. A Joana rumo a Ayacucho, numa outra longa viagem de 10 horas em autocarro, cidade onde iria trabalhar por 3 semanas como voluntária numa instituição que lida com crianças especiais abandonadas pelos pais. E eu regressei a Huaraz, onde depois de uma noite de descanso, parto com o Jeff, na manha seguinte rumo a Huanuco, Huancayo e posteriormente Ayacucho. Uma etapa de 960 km com meia dúzia de passes acima dos 4000m, que esperávamos fazer em menos de 2 semanas.

Cordillera Blanca

Pedalamos os primeiros 38 km seguindo o Rio Santa, que agora não è mais do que um pequeno riacho no estreito vale. A paisagem era bastante agradável, com pequenas florestas de eucaliptos que ofereciam algum abrigo do vento teimoso. Existe uma certa harmonia na terra: as plantações verdes nas encostas da Cordilheira Negra a Oeste, os eucaliptos, as casas castanhas de adobe junto à estrada, e a Este, como pano de fundo, as torres de granito cobertas por um manto branco que completavam o mosaico da paisagem.



Em Catac (3600m) paramos num restaurante para uma pequena pausa e um mate de Coca. Ai, um caminho de saibro afastava-se da estrada principal e subia lentamente a Cordilheira Branca. Pedalávamos acima dos 4000 metros de altitude e as consequências do ar rarefeito já se faziam sentir. A única informação que tínhamos acerca desse caminho, para alem de estar assinalado no meu mapa como "camino carrozable", tinha vindo de um guia de Mountain Bike que conheci em Huaraz e que descreveu a estrada apenas com a frase: "essa carretera esta abandonada, no sei lo que passa ayha!"
Esse caminho que ligava Catac com o passe de Abra Yamashallah (4720m) não era apenas um "corta-mato" ao nosso itinerário, mas também uma viagem através do incerto e do desconhecido.

Com as inclinações mais acentuadas o ritmo cardíaco aumenta. Por vezes o nosso progresso è incrivelmente lento com paragens para tomar fôlego cada 100 metros. Tínhamos comprado comida para vários dias e os meus alforges iam cheios com um peso total de algo entre 40 a 50 kg. O Jeff, como è seu costume, ia ainda mais carregado com algo entre 60 e 70 kg.




A minha decisão em pedalar por estas terras remotas do planeta, não vem sem espírito de sacrifício, os seus desafios físicos e mentais, e as suas consequências: assim è vida de um ciclonauta vagabundo! Decisões, circunstancias e consequências. Tenho que aceitar as inconveniências desses desafios como o preço a pagar pelas minhas decisões.

Acampamos a 4229 metros de altitude junto a uma fonte de agua natural gaseificada (Boca de Puma), onde passo uma noite mal dormida com fortes dores de cabeça e calafrios, sintomas de uma subida rápida causada pela minha viagem de autocarro a Lima, onde em menos de 48 horas desci ao nível do mar e regressei aos 3100 metros de altitude (Huaraz), e apenas com uma noite de descanso pedalei acima dos 4000 metros.

Perto do acampamento uma pequena floresta de Puya Raimondi, plantas nativas dos Andes que se encontram apenas entre os 3200 m e os 4800 metros de altitude, e que supostamente podem viver até aos 100 anos de idade.


Ao amanhecer a claridade desperta-nos revelando mais um dia de céu azul e nuvens brancas e altas. Desde que saímos de Trujillo que choveu apenas nos dias que passamos em Huaraz. A época das chuvas parecia ter finalmente terminado.
Sentia-me feliz.
Desde Chiapas no México em Maio do ano passado que tenho viajado sempre sobre as chuvas (por vezes torrenciais) das diversas estações climáticas do continente. Continuamos viagem.


Consigo ver ao longe o caminho que segue pelo meio do vale selvagem. Ao fundo desse vale, a estrada ziguezagueia encosta acima até se perder de vista algures no topo da montanha. Levamos varias horas a alcançar o passe. Depois foi a revelação! Um gigantesco vale coberto por um manto de verde-lima e rodeado por picos brancos. Parecia que toda a produção de Coca do país foi derramada sobre aquelas catedrais de granito e gelo. Cada curva parecia revelar uma nova pintura de beleza irrefutável.








Depois de uma pequena descida de 200 metros uma curva revela a continuação da estrada ao longe no horizonte. A estrada continuava a subir mas do nosso lado direito observamos o que parecia ser um braço da montanha que se estendia até ao profundo vale. O seu cume oferecia vistas de 360 graus dos vales e picos das montanhas, alguns deles acima dos 6000m. Um lugar perfeito para acampar.

Eram 2 da tarde e tínhamos feito apenas 28 km, mas o lugar era demasiado bonito para ser ignorado. Enchemos as garrafas com agua pura recolhida da valeta e deslocamos as bicicletas através da tromba de terra até alcançar o seu ponto mais alto com o íngreme vale ao fundo da ravina.
Estávamos no centro de um puzzle tridimensional num mundo vertical, que me è impossível descrever. Talvez as fotos lhe façam alguma justiça:







Tinha atingido não só o passe e o acampamento mais alto da viagem, mas também um dos lugares mais bonitos onde alguma vez acampei. Lembrei-me da Joana e do quanto gostaria que ela estivesse ali ao meu lado. Na manha seguinte acordamos com uma fina camada de neve sobre as tendas e bicicletas. Seguimos viagem. A nossa estrada continua a subir muito suavemente até atingir o seu ponto mais alto a 4876 metros, segundo indicações do GPS do Jeff, pois o meu altímetro já não funciona desde uma forte chuvada que apanhei no sul do Equador. A partir daqui a gravidade estava do nosso lado e iniciamos a descida até à estrada alcatroada, na parte norte do passe Abra Yamashallah (4720m) e posteriormente até Huallanca.

Em Huallanca termina de novo o alcatrão e damos inicio a mais 4 dias a pedalar por estradas de calhau rolado, partes dela em muito muito mau estado, como foi o caso do downhill desenfreado de 35 km, entre o passe Corona del Inca (3979m) e a cidade de Huanuco (1910m), que exigiu alguma perícia técnica e muita paciência para não esbarrar nas pedras soltas.
Corona Del Inca






Huanuco

"TU, que dizes ser filho de Deus, porque não te salvas?", dizia o ladrão mau a Jesus Cristo crucificado na cruz, com a sua face e corpo coberto de sangue e cabeça imóvel caída entre os ombros. Maria e as suas amigas choravam perto da cruz, e os soldados de César com as suas brutas actividades, completavam a atmosfera surrealista.
Horas antes uma multidão de milhares de pessoas, acompanharam a longa caminhada de Jesus desde o centro da cidade de Huanuco até ao lugar de crucificação no topo de um monte na periferia da cidade.

As correias dos guardas de César chicoteavam repetidamente as costas de Jesus e dos dois ladroes. Senti a minha pele a arrepiar com o realismo da actuação das varias dezenas de actores, e também pelos comentários de alguns participantes: "crucifiquem-os!", "crucifiquem-os!"









Tínhamos chegado à cidade de Huanuco no fim de semana da pascoa. O festival religioso mais celebrado do calendário Peruano.
Sou, naturalmente, Lusitano e tenho uma educação crista. Este tipo de celebrações acompanharam-me ao longo da vida, mas em nenhuma outra parte assisti a um evento religioso cristão com tanto fervor e realismo como a semana santa em Huanuco.

Aqui no coração da cordilheira andina, a fé crista misturada com influencias Incas e pagas, tem outras proporções. Essas festividades vividas com uma forte paixão, crença e fé religiosa, são a expressão de um povo que vive uma árdua vida dia a dia. Um refugio às hostilidades que as suas vidas lhes proporcionam.

O altiplano

A EN 3 que atravessa a cidade de Huanuco, segue para nordeste para Tingo Maria e a selva amazónica, ou para sul e para o altiplano de Junin e posteriormente Huancayo. Levamos um dia e meio a atingir um passe de 4387 metros de altitude, perto de Cerro de Pasco. A estrada plana, agora alcatroada, atravessa a monótona e fria paisagem do altiplano de Junin, sem descer dos 4000 metros de altitude, durante mais de 100 km.




Ao contrario da Cordillera Blanca, aqui a paisagem è desolante, fria e monótona.. O vento frio do altiplano não convida a muitas paragens, e aproveitamos para somar quilómetros. Passamos uma noite fria na aldeia de Junin, lugar histórico e centro de batalha entre Incas e Espanhóis, e no dia seguinte seguimos viagem pedalando 142 km até Jauja, no vale de Mantaro.

O reencontro

Chegou a hora de nos separar-mos mais uma vez. O Jeff seguiu para Huncavelica e posteriormente para a costa do Pacifico, e eu segui pela espinha dorsal
andina rumo a Ayacucho e ao reencontro com a Joana. Em Izuchaca termina mais uma vez o alcatrão. Pela frente, mais 3 dias e cerca de 200 km de estradas em saibro. Uma estrada remota, poeirenta e irregular, território de zancudos (mosquitos) e tarântulas, algumas aldeias simpaticas, mas também com algumas partes de grande beleza natural, especialmente em redor de Mayocc, onde se encontra o Canyon de oooo.
O Canyon apresenta uma paisagem desértica mas cheia de cactos que me fez lembrar o deserto de Baja no México.

Nao è um rio mas sim a minha estrada!


Notem a estrada ao fundo a subir a montanha

Uma tarantula que nao me deixou dormir em paz...




Acampamento com bues de Colibris...

960 km e 15 dias depois, como prometido, e eu e a Joana reencontravamo-nos mais uma vez. Vamos partir em breve para mais uma etapa na cordilheira andina, desta vez, cerca de 500 km até Aguas Calientes. O relevo de alta montanha è bastante "enrugado" nesta parte dos Andes, o que muito provavelmente irá proporcionar uma das etapas mais difíceis na nossa travessia do Peru.
Marcamos encontro para as sumptuosas ruínas de Machu Picchu...

Nuno Brilhante Pedrosa
Em Ayacucho, Peru.

3 comments:

António Rebordão said...

Bombástico! O relato e essas fotografias avassaladoras quase me levaram a cometer um acto irreflectido de comprar um bilhete de avião para amanhã. Continua a partilha e continuação de boas viagens.

Abraços,

Renato Bento said...

Caro primo,

tomei conhecimento das tuas viagens em conversas de família, mas nunca pensei que fosse algo tão sério e tão extraordinário.

Sou filho do Jorge Brilhante Pedrosa (neto da Deolinda e do Jorge).

Abraço.

ulemacak said...

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