10.31.2007

Do mar das caraíbas à cordilheira Andina (Colômbia)


Guerrilhas e narcotráfico, Pablo Escobar e as FARC, O "Gabo" e o cafè, a violência e sequestros, e mais recentemente a Shakira, são provavelmente os melhores "export" Colombianos. Mas por detrás desta imagem impingida ao mundo pelos media existe um país com uma riqueza humana e biodiversidade incomparável na América Latina.
É verdade que zonas problemáticas existem, mas desde que sejam excluídas do itinerário, os poucos afortunados que visitam o país, por vezes questionam o porquê de todas essas "headlines", quando viajar no país é simplesmente tão.....normal!



A jornada à cidade perdida, apesar de bonita, foi também dura. A Verónica queixava-se de dores num joelho e decidimos passar 2 dias a descansar no Parque Nacional Tayrona, que ficava apenas a um dia de pedalada de Santa Marta. O parque é um outro oásis de paz neste turbulento país. É também um dos mais visitados em toda a Colômbia e por boas razões. Abrange uma área de 15.000 hectares de selva costeira, praias e baías de paisagens idílicas.

Devido ao seu estatuto de área protegida, o desenvolvimento e presença humana limita-se ao turismo controlado e a alguns pescadores e indígenas Kogui que por ali vivem. O acesso ao muitas das praias como Arrecifes e Cabo de San Juan, é apenas possível a pé ou a cavalo, e o alojamento nessas baías limita-se a dormitórios em redes, campismo o algumas cabanas ecológicas. Julgo que já não visitava um parque nacional tão bem organizado e gerido desde Belize ou até mesmo dos Estados Unidos.

Infelizmente nem todos os parques naturais da Colômbia são administrados desta forma, e o parque nacional Tayrona é mais a excepção do que a regra. Os cultivadores de Coca muitas vezes usam os parques naturais para cultivarem a planta, tirando vantagem das localizações remotas e do estatuto de reserva natural que lhes garante que os seus cultivos não irão ser destruídos com a pulverização aérea de químicos. Um método usado noutras partes do país através do chamado "Plan Colombia" financiado pelos EUA.











As águas transparentes das caraíbas e a sombra dos coqueiros convidava a passar por ali vários dias, mas a menos de uma semana do regresso da Verónica a Espanha, tínhamos que continuar.

Em apenas 2 dias de pedalada, a estrada costeira levou-nos deste as montanhas do litoral caribenho de floresta luxuriante e verde, a quase ao oposto. As florestas e áreas de cultivo começaram lentamente a dar lugar a acácias e cactos. Estávamos a entrar nas planícies áridas da península de La Guarija. As diferenças de paisagem em tão curto espaço de tempo eram surpreendentes. A estrada absolutamente plana cortava pela paisagem árida e quente. O amplo azul do céu preenchia o ar e abraçava a terra, em todas as direcções, com uma veemência sofucante acrescida pelo calor abrasador.

Mas aqui, nesta zona inóspita do norte da Colômbia, habitada pelos indígenas Wayuù, também chove durante um curto período do ano. Nesta altura do ano, vastas zonas de planície seca dão lugar a zonas pantanosas de cactos e acácias submergidos, e algo de estranho acontece. O deserto inundado pelas chuvas abre passagem aos peixes que "fogem" dos rios, do mar e das "cienagas" e os indígenas Wayuù aproveitam para lançar as redes ao deserto inundado.




Rioacha, a capital da província de La Guajira, foi o final de viagem para a Verónica. Não foi um final feliz. Ambos sofremos de um desarranjo intestinal com algo que comemos (julgo que com uma sopa indígena de chibo, oferecida por uma simpática senhora Wayuù, na aldeia de Mayapo, algures na costa desértica).

Seja qual fora a razão, passei 3 ou 4 dias com diarreia, vómitos e em recuperação, seguidos de mais 3 ou 4 dias a tentar combater a preguiça de pedalar que se tinha apoderado de mim.

Mas antes desses dias solitários de convalescença, regresso a Cartagena com a Verónica percorrendo de autocarro os cerca de 500 km que pedalamos ao longo da costa. Levo-a ao aeroporto e regresso a Rioacha e à companhia da minha burra e do meu desconforto estomacal.
Voltou-se a repetir aquele sentimento nostálgico de separação de mais uma excelente companheira de viagem na Panamericana. Ao longo dos meses, encontros com outros ciclistas e amigos tem sortido um efeito energético e um preenchimento de alma inquestionável. Sem eles, provavelmente não aguentaria os quase dois anos que irá durar esta viagem solitária.

Não sei bem explicar porque passei uma semana nesta cidade-praia desinteressante. Planeava seguir pelo deserto até ao Cabo de la Vela, na ponta norte da península, e passar mais uns dias a pedalar por aldeias de indígenas Wayuù, tentando conhecer um pouco mais acerca da sua cultura.




Mas mudei de planos!
Já chega de praias, calor desconfortável e estradas planas, de mosquitos e de pás de ventoínhas barulhentas dos hotéis. Está na altura de me dirigir para as montanhas.

Levanto-me o sol ainda não tinha nascido (coisa rara!), tomo o pequeno-almoço e às 5.45 estava na estrada. Dirijo-me à marginal da cidade e despeço-me prolongadamente do Atlântico. Não o iria voltar a ver até chegar a Portugal. Dou meia volta e começo a pedalar directamente para sul. Destino: Andes!
Estava na altura de enfrentar o gigante...
Lancei um desafio a mim mesmo de chegar às montanhas em 5 dias.

Ao seguir a costa desde o local onde desembarquei na Colômbia até aqui na La Guarija, tinha-me afastado da Panamericana cerca de 800 km. Agora, pedalava directamente para sul, acompanhando a fronteira da Venezuela - a cerca de 80 km dali - e a cordilheira oriental, ambas ao meu lado esquerdo. Para oeste, as vastas planícies do norte colombiano. A estrada era plana e monótona, atravessando zonas agrícolas e pequenas aldeias e cidades rurais. Ligo o MP3, cabeça baixa, pé no pedal e toca a somar quilómetros.






Nos 5 dias entre Rioacha e Bucaramanga, ou seja, entre a costa e as montanhas, somei mais de 650 km. Fazendo no primeiro dia 139 km, seguidos de 146 km, 141 km, 136 km e no quinto dia - já nas montanhas - apenas 90 km mas com um desnível acumulado de 2042 metros.
Mas a monotonia da pedalada é sempre quebrada com encontros inesperados. É esse um dos grandes prazeres de viajar, em especial em duas rodas.

Durante toda a viagem, sempre fui confrontado (com ocorrência diária) por outros ciclistas, motoristas e motociclistas, que me acompanham durante breves momentos, não só curiosos em saber de donde venho e para onde vou,mas principalmente intrigados com as razões que me levam a enfrentar situações climáticas e de relevo adversas com o esforço das minhas pernas. Porquê pedalar à chuva e ao sol? Porquê subir montanhas? E porque em bicicleta e não de mota ou de carro?

Na Colômbia rural, onde praticamente não existe turismo, muito menos em duas rodas, um ciclo-turista numa bicicleta carregada, é objecto de maior curiosidade, olhares incrédulos de incompreensão. Mais do que em qualquer outro país da pan-Americana que visitei. Alguns falam-me que é um modo de viajar audacioso, ecológico, saudável ou enriquecedor, mas a maioria julgo que pensa que é apenas falta de siso ou mesmo lunatismo.

Entro na cidade de Pailitas e um jovem de motorizada acompanha-me fazendo as já habituais perguntas: "de donde venho e para onde vou?". Normalmente digo que
venho da última cidade importante que passei ( Santa Marta ou Rioacha) e que vou para a próxima cidade significante (tipo Bucaramanga ou Bogotá). Isso, por si só, já é um feito enorme, e não é necessário dizer que venho de mais longe. Mas a persistência deste motociclista leva-me a mencionar o Canada e a Argentina.

O motociclista desacelera e troca impressões com outro companheiro motociclista que por sua vez acelera e questiona-me com as mesmas perguntas. A sequência repetiu-se várias vezes, com outros motociclistas curiosos. Quando dou por mim, estava a pedalar pelo centro da cidade, rodeado com 10 ou 12 motociclistas, bloqueando a estrada, e seguidos por uma fila de carros e autocarros. Um dos motociclistas começa a apitar e os outros seguem-lhe o exemplo. A bicha de carros também, mas como eu viria a descobrir dentro de momentos, era mais por irritação pela via obstruída.

A Colômbia está agora em campanha eleitoral, e por momentos, confuso com a situação, pensei que talvez se aproximasse algum comício eleitoral ambulante. Questionei um motociclista porque apitavam:
-São as eleições?, perguntei.
-Não, é por ti, respondeu.
- Mas porquê?
-Porque é divertido, retorquiu.
Aperto a minha "trompete" enferrujada e junto-me à festa.


O "desfile" chegou ao fim no "reten" militar à saída da cidade. Postos de controlo militar são bastantes comuns por toda a Colômbia, em especial nas estradas principais, e apesar deles inspirarem segurança, a maior parte das vezes que passo por eles, os militares parecem estar mais entretidos na conversa debaixo da sombra de uma árvore do que no controlo do trânsito. Dizem-me que são mais activos pela fresca, ao final da tarde e durante a noite. Com tanta algazarra, mandam-me parar. As motos desaparecem pelas ruas adjacentes e o trânsito aglomerado começa a fluir com maior rapidez. Paro para um pouco de conversa e um "tinto" (café preto colombiano servido por toda a parte em pequenos copos de plástico). Depois das habituais trocas de impressões (até agora nunca revisaram os alforges), sigo viagem.



A estrada aproxima-se da cordilheira oriental e começa a subir lentamente. Os desníveis tornam-se mais acentuados com a passagem de cada vale. Pedalava agora nos "pés" dos andes. As planícies, essas, já tinham desaparecido por completo.

Bucaramanga é uma cidade de montanha agradável, moderna e sofisticada, com inúmeros parques e espaços verdes e temperaturas amenas. É também um marco duplamente importante na minha viagem na Panamericana. Não só entrei oficialmente na cordilheira Andina, mas também será aqui por perto que irei passar o "ponto médio" da viagem, apesar de que já percorri (em quilómetros) mais de dois terços da viagem. Confuso? Eu explico:
Inuvik (o início da viagem) fica à latitude de 68.36243°N, enquanto que Ushuaia, a meta final, fica à latitude de 54.79156°S. O ponto médio entre os dois - segundo indicações de GPS enviadas por e-mail pelo Jeff Kruys - é 6.785435°N, ou seja, a cerca de 40 km a sul de Bucaramanga.

Mas enquanto que a variação de longitude na parte norte do continente foi de cerca de 65 graus entre o ponto mais a Oeste, Dawson city, Canada (139.4166667°W), e o ponto mais a Leste, Baracoa, Cuba(74.4958333°W), na América do sul a variação de longitude será apenas de 13 ou 14 graus, com o ponto mais a Oeste sendo provavelmente Sullana ou Negritos no Peru. O ponto mais a Leste que irá coincidir com a meta final que é a cidade austral de Ushuaia.
Isto significa que irei a partir de agora pedalar "mais a direito" para sul percorrendo "mais" longitude em menos quilómetros.

Descansei um dia em Bucaramanga e na manhã seguinte atiro-me com garras às montanhas. Nos primeiros 40 km a estrada oscilava entre os 700 metros e 1300 metros de altitude, para depois "cair" vertiginosamente num canyon descendo até ao fundo do vale a cerca de 550 metros de altitude. Depois de atravessar um enorme rio passei umas boas 4 horas a subir a encosta sul do Canyon de Chicamocha subindo quase até aos 2000 metros. Na subida ultrapassava então o tal "ponto médio" da viagem. A paisagem que me rodeava era das mais bonitas dos últimos meses.







Do outro lado do passe a estrada desce aos 1100 metros por um outro vale, este mais estreito, verdejante e populado com várias aldeias e cidades coloniais. Encontro-me de momento numa delas, San Gil, conhecida em toda a Colômbia como a "capital" de desportos radicais. Rappel, raft, parapente e escalada são apenas alguns dos pacotes de adrenalina oferecidos pelas inúmeros operadores de agências de aventura espalhados por esta agradável cidade de montanha. San Gil é a primeira cidade colonial espanhola de um circuito que tenho planeado até chegar a Santa Fé de Bogotá

Tinha acabado o dia com o contador a marcar 101 km e acumulado 2055 metros de desnível. Bem vindo à cordilheira andina. A partir de hoje, e durante os próximos meses, será sempre - salvo raras excepções - a pedalar "lá por cima".


Nuno Brilhante
Em San Gil, Colômbia.

6 comments:

silvio_teixeira said...

Força nas canetas Nuno,
Estou a fazer força por ti.
Apesar de não te conhecer já anseio pelo teu regresso para podermos ir beber um café a Leiria
Um abraço Amigo,
Sílvio

LPE said...

sempre a somar km! um ritmo impressionante!!!
a tua burra esta linda ;-)

Abracoes
TP

bartulo said...

Companyero, vaya fotazos. No he tenido tiempo de leer la cronica, pero me han impresionado las imagenes. Estoy en Baja trabajando de windsurf intructor y recordando los viejos momentos. Cuidate y disfruta de los Andes.

Tininha said...

Olá Nuno
Continuo apaixonada pelas tuas viagens, pelas fotografias e por tudo e tudo e tudo

Pedro said...

Nuno, 2 anos é muito tempo e, simultaneamente, não é nada na nossa vida. Esta tua viagem é uma experiência sem igual, que fará (está a fazer) de ti uma pessoa melhor. Força e boa sorte!

Anonymous said...

Que viagem louca! E ainda por cima de bicicleta. é um sonho essa viagem!