Dia 244
Km 14436
Ainda não estava completamente convencido de que estava a tomar a decisão certa quando embarquei no voo da ´cubana de aviacion´ com destino a La Havana. O voo iria durar apenas uma hora mas o bilhete de 320 dólares mais 20 dólares pela bicicleta eram um arrombo ao meu pequeno orçamento de viagem, e alem disso estava um pouco relutante em por a burra num avião. Mas não iria ter outra opoturnidade tão cedo de pedalar no ultimo dos verdadeiros países socialistas antes que este desmorona-se. quando o Tupolev Russo levantou voo do aéreoporto de Cancun e um fumo estranho apareceu por debaixo dos meus pés, não ajudou nada a fortalecer a minha decisão.
-È o ar condicionado, disse uma turista Americana sentada ao meu lado tentando tranquilizar-me. Ela também iria fazer ciclo-turismo mas organizado e com carro de apoio. Usava o México como plataforma de embarque, uma vez que os cidadaos americanos estão proibidos pelo seu governo de viajar a Cuba, parte do embargo que este pais têm com a ilha.
Ar condicionado? Isto mais parece que vai tudo pelos ares!!!
A bicicleta apareceu meticulosamente intacta no tapete rolante junto com a bagagem dos outros passageiros. Dirigi-me à imigração. Uma cena que me preocupava era o facto de o governo cubano obrigar todos os turistas a obter uma reserva de no mínimo de 3 dias num hotel em Cuba. Uma forma de obrigar os turistas a gastar dinheiro nos hotéis estatais e de desencorajar o turismo independente. Eu não tinha feito essa reserva e caso não tivesse um cupão comprovativo para apresentar, e caso me fosse pedido, teria que fazer a reserva no aeroporto antes de passar a imigração, que provavelmente me iria custar mais do que o valor do bilhete de avião.
O oficial da alfandega, um senhor de meia idade de evidente descendência espanhola,corpo franzino, calvo, olhar prudente e bigode-que supus- amarelado pelo tabaco, pediu-me o passaporte e durante um período que me pareceu uma eternidade, observava a minha foto de cabelo curto, barbeado, pele branca e olhar de cansado, com o indivíduo à sua frente de cabelo comprido, barbudo, pele queimada pelas muitas horas a pedalar ao sol e um olhar que não conseguia esconder certo nervosismo. Baixou os olhos e comecou a introduzir alguns dados no computador deliberadamente escondido por debaixo do balcão que nos separava.
-Onde se vai alojar em cuba?
Eu sabia que essa era a pergunta chave. Não podia dizer que iria ficar em casa do meu amigo Chino em La Havana, pois este não tinha efectuado o necessário requisito por escrito as autoridades para poder alojar estrangeiros, tornando a minha estadia em sua casa ilegal e com certas consequências para ele caso fosse apanhado.
-Es lo hotel...En La Havana...momentico!
Pretendia procurar o cupão de reserva entre outros papeis.
-Ah! Hotel Santa Isabel.
Durante o voo tinha procurado no meu guia de viagens o nome e direcção de um dos hotéis mais luxuosos de Havana. Carimbou o visto por 30 dias e apertou o botão que abria a porta ao mundo socialista.
Mas antes de me deixar ensopar pelo ar quente e húmido da ilha, tinha que primeiro decifrar o complicado sistema monetário Cubano. Com o meu cartão da conta corrente levantei 300 pesos convertíveis e 50 desses pesos troquei-os por pesos cubanos, ao que recebi 120 notas novinhas em folha em notas de 10 pesos. Um maço de dois dedos de espessura!
Em Cuba existem duas moedas em circulação, o peso convertível ou CUC, chamado também de chavito, divisa ou por vezes de dólar. O seu valor è idêntico ao do dólar, menos avantajadas comissões, e è utilizado por turistas para pagar alojamento transportes inter-cidades e um pouco de tudo em zonas turísticas, mas tambem è utilizado por cubanos para pagar bens considerados supérfluos e muitas outras coisas. O peso cubano, uma moeda desvalorizada (1 peso são 0.027 euros) usada para comprar comida nos mercados e bebidas (em certos locais), transportes (para cubanos apenas) etc, etc. Os salarios dos cubanos sao todos pagos em pesos cubanos. Uma casa de CUC não aceita pesos cubanos , mas uma casa de pesos cubanos podem aceitar CUC, dependendo das situações. Um sistema um pouco confuso e saber onde se paga com quê, pode ser um problema, mas em poucos dias se aprende a identificar o tipo de moeda a usar.
Iria aprender com os meus proprio erros.
Fiquei três dias em La Havana hospedado em casa do Chino (hector Perez), um artista Cubano que tinha conhecido em Londres durante a sua visita a Inglaterra a convite de um amigo nosso. Cubanos só estão permitidos a viajar para fora da ilha mediante um convite de uma instituição ou particular estrangeiro. Vários dos seus trabalhos ainda decoram as paredes do meu apartamento londrino.
Logo na minha primeira noite em Havana, iria ter uma introdução aos factores que mais delíciam e atraem os estrangeiros a esta ilha: o calor humano e hospitalidade dos cubanos, e os efeitos que o sistema socialista tem na sociedade. Há também os que vêm apenas para relaxar nas areias das lindíssimas praias, mas como poderão essas pessoas conhecer a verdadeira Cuba se ficam alojados em estâncias turísticas onde cidadões cubanos estão proibidos de entrar? E que são levados em excursões a locais previamente escolhidos pelo governo?
Armados com uma garrafa de rum, fomos à casa de uns vizinhos do chino, no bairro 10 de Outubro. O tomás e a sua esposa eram militares de rank elevado e ambos membros do CDR do bairro, e cujo presidente era o próprio tomás.
O CDR, ´comiteé de defensa de la revolucion´, é uma associação supostamente ´não governamental´ com mais de 7 milhões de membros (o pais tem 11 milhões) com trabalhos variados no âmbito da saúde e educação, mas o seu grande sucesso é num sistema de vigilância publica extremamente eficiente que segundo as palavras do chino "o CDR sao o alicerce da revolução e o seu sucesso".
Todas as cidades, aldeias, bairros ou ruas do país têm vários membros do CDR que espiam nos afazeres diários de todos e que são depois discutidos em assembleias locais pelos seus membros, com certa regularidade. O CDR iria estar presente durante poda a minha viagem na ilha, fosse através de cartazes de propaganda nas estradas, conversas com os locais ou em situações que implicavam o seu nome.
Durante a noite, por entre garrafas de rum (eu contei pelo menos 3), o chino foi questionado á parte pelo tomás em relação á minha presença. Eram todos amigos, mas isso não significava que a minha presença nao estivesse a por em risco a reputação do tomas, mas que apesar de tudo não deixou de me receber á boa e acolhedora maneira cubana.
Para rentabilizar as 4 semanas que tinha na ilha do Fidel e para aproveitar os ventos que sopram quase incessantemente de oriente para ocidente, decidi apanhar um autocarro para a cidade de baracoa na ponta oriental da ilha e começar a pedalar daí rumo a Havana. O meu itinerário excluía deliberadamente as estâncias turísticas da costa norte, Guardalavaca, Cayo Coco e Varadero, uma vez que estas eram zonas exclusivas a estrangeiros e, portanto com pouco de cuba para ver á parte da areia branca e mar cor turquesa.
Também è no oriente que se encontram os maiores desafios para ciclismo; a estrada `La Farola`, um dos primeiro sucessos de engenharia do então novo regime, a `Sierra Maestra`, local onde se iniciou a revolução, e onde se encontra o pico mais alto da ilha (pico Turquino a 1972m), e a `La gran Piedra`, uma ascensão aos 1200 metros em apenas 14 km. Na viagem de 18 horas de autocarro conheci o Isaac, um outro ciclista de 22 anos que iria ser o meu companheiro de viagem nas duas semanas que se seguiram.
O Isaac era um jovem Canadense, guia para caçadores de alces e caribu nas províncias do norte do Canadá, e na sua primeira viagem de ciclo-turismo em autonomia.
Baracoa foi o primeiro local da ilha onde Cristóvão Colombo atracou, e a cidade tem forte influencia africana deixada pelas varias gerações de escravos trazidos pelos espanhóis e franceses. Parecia um pouco como se África estivesse a olhar-se ao espelho do outro lado do atlântico.
O meu primeiro dia de ciclismo em cuba foi também um dos mais difíceis. Os 78 km entre Baracoa e Yacamo através da estrada `La Farola`, levou-me desde uma paisagem luxuriante e tropical onde abundam os coqueiros, árvores de cacau e manga, subindo a ´Sierra del Purial´ com acentuadas inclinações que por vezes chegavam perto dos 20%, até ao seu ponto mais alto a apenas 546 metros. Do lado sul da montanha a diferença era dramática, no `downhill` a floresta tropical desapareceu, transformando-se numa paisagem seca e árida, desflorestada, e apenas com alguns cactos.
No dia seguinte continuamos a pedalada pela província de Guantanamo, mais conhecida pela famosa base aérea americana (e tambem pela guaíra Guantanamera!) Tentamos varias formas de aceder ao ´mirador de molones´, um ponto de observação onde se avistava a base aérea mais minada do hemisfério ocidental, mas os acessos estavam todos cortados a estrangeiros, pelo menos em bicicleta! Os locais eram bastante relutantes a dar-nos qualquer tipo de informação. Era óbvio que `Guantanamo Bay` era considerado tabu e um dos factores humilhantes das deterioradas relações cubano-americanas.
Alojamos-se numa casa particular na cidade de guantanamo a 21 km a norte da base americana. Casas particulares autorizadas a receber turistas, cobram entre 10 a 20 CUC (8 a 16 euros) por quarto e sao a melhor forma de alojamento na ilha para turistas.
No dia seguinte continuei sozinho até Santiago de cuba. O Isaac ficou mais um dia em guantanamo para mais umas classes gratuitas de salsa, oferecidas pela jovem (e bonita) empregada da casa onde nos alojamos e que nos tinha sido apresentada como sobrinha da família vinda de puerto padre. Em Cuba o único empregador oficial è o estado. A contratação de empregados por particulares è ilegal, daí que as inúmeras pessoas que trabalhavam em casas particulares nos foram apresentadas como ´primas´ ou ´sobrinhas´ ou membros afastados da família.
Era sábado à noite e eu e o Isaac estávamos de novo juntos em Santiago de Cuba. A noite Santiaguera que ocorre cada quinze dias numa das avenidas da cidade a sul da praça de Marte estava em pleno fervor e nós iríamos fazer parte dela. Centenas de corpos maioritariamente negros, suados pelo ar quente e humido, expostos pela pouca roupa vestida, dançavam freneticamente ao som de Regaton vindo de vários pontos da avenida. Isto não era apenas mais uma festa, era a noite Santiaguera, conhecida por toda a ilha como uma das melhores do tipo. A frenética atmosfera parecia ser tirada do filme ´a cidade de Deus`, mas sem a violência. Os poucos turistas que se avistavam camuflavam-se por entre as multidões. Turistas de pacote estavam provavelmente na casa de La Trova, uma casa cultural que existe em todas as capitais de província da ilha. Mas esquece `La Trova´ ´musica Son´ ou Compay segundo; O que esta a dar na ilha è Regaton.
Um estilo de musica importado de porto rico, que tomou de arrombo todas as caraíbas e além mar. Uma mistura de reage, salsa e com um sabor a tecno, com uma batida repetitiva e irritante, mas que è dançada de uma forma bastante sensual senão mesmo sexual.
Passamos uma noite memorável na companhia do Alberto e dos nossos novos amigos, regada com muito rum e cerveja servida da torneira para uma garrafa vazia de litro e meio de Tu-Kola (a versão cubana de coca-cola), cortada pelo gargalo e a 20 pesos cubanos (0.55 euros) cada rodada. O rum era pouco mais caro a 40 pesos o litro( 1.10 euros).
A Mónica uma das amigas do Alberto estava decidida a ensinar-me a dançar Regaton. Com o seu esbelto corpo negro de costas e colado ao meu, braços semi levantados, tronco ligueiramente inclinado para a frente, as suas ancas moviam-se a uma velocidade frenética contra o meu falo erecto, enquanto que o resto do seu corpo permanecia intacto.
Dança! Dança!
Gritava virando a cabeca para mim e mostrando o seu sorriso natural e espontaneo que me apeteceu roubar e por nos alforjes. Eu tentava em vão acompanhar os movimentos, mas era evidente que aquela dança não estava no meu DNA.
No dia seguinte meio ressacados seguimos viagem.
Estava apenas com 3 dias de ciclismo em Cuba. Tempo suficiente para me aperceber que as minhas pedaladas um Cuba iriam ter um ritmo diferente do continente. Não iria ser uma viagem acerca de paizagens bonitas, desafios fisicos ou viagens interiores. Iria ser uma viagem ás raizes de um povo que apesar de refem na sua propria pátria e de viver sobre o chapéu de um sistema que parou o relógio do desenvolvimento, demontra sem hesitação, aos afurtunados que visitam a ilha, o melhor que tem para oferecer: Calor Humano.
Como se lé nas t-shirts vendidas nas casas do governo: "Soy Cubano, Soy mas humano"
Depois da noite ´Santiaguera´ , decidimos adicionar um novo elemento à nossa bagagem. A partir dali iríamos ter sempre uma garrafa de rum nos alforjes. E a ideia não Tardou a provar-se útil...
Nuno Brilhante Pedrosa
(escrito em) Santiago de Cuba, CUBA.
4.03.2007
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