10.27.2008

O Altiplano Chileno, a quebrada de humahuaca e reféns da situação política Boliviana (Chile, Argentina e Bolivia)

A travessia da cordilheira Andina de Este para Oeste pelos 430 km de estrada alcatroada que separam o Oasis de San Pedro no deserto de Atacama Chileno e Purmamarca, no canto norte dos Andes Argentinos, não foram tão difíceis como imaginávamos. Falaram-nos de um trecho de 290 km sem pontos de abastecimento, quase sempre acima dos 4000 metros, e por isso, preparamo-nos com água e comida para vários dias. A experiência do Altiplano Boliviano com largas etapas sem pontos de abastecimento tinham-nos ensinado algumas coisas acerca de logística e de gestão de recursos. A nossa excelente forma física acrescida aos dias de pasmaceira a descansar em San Pedro, que nos revigorou o corpo e a moral, encheu-nos também de forças e predisposição para enfrentar de novo as estradas de alta montanha.

A parte Chilena da estrada sobe impiedosamente dos 2500 metros aos 4500 metros em pouco mais de 40 km, depois mantêm-se acima dos 4000 metros até Paso de Jama (4200m), na fronteira com a Argentina - a 160 km de San Pedro de Atacama. Esta parte do altiplano para além de ser mais alta do que no lado Boliviano oferece paisagens tão ou mais fantásticas do que no país vizinho e com a grande vantagem da estrada ser toda alcatroada.





A nossa decisão em cruzar a cordilheira Andina para o lado Oeste era parte de um ambicioso plano de regressar ao altiplano Boliviano e a La Paz, para posteriormente descer pela estrada “de La muerte” para o amazonas e sair do país em barco pelo rio Mamoré. Mas todos esses planos iriam ser drasticamente alterados uma vez que entramos em território Argentino.
A nossa passagem pelo Chile foi demasiado curta para termos uma percepção imparcial do país, e ao final de 8 dias atravessamos, com certo agrado, a fronteira para a Argentina. O Chile pareceu-nos um país demasiado caro, moderno e “civilizado”, e com uma paisagem humana muito homogênea, pelo menos para padrões Latino-Americanos. Com certeza que o Chile tem lugares maravilhosos para cicloturismo, entre eles a Carretera Austral no Sul do país, que eu espero percorrer numa das últimas etapas da minha travessia do continente Americano.

Depois das aborrecidas formalidades aduaneiras em Paso de Jama, dava entrada no 17º país da viagem. O altiplano Argentino, a uma altitude que ronda os 3500 metros, é muito mais aborrecido que os seus homólogos Chileno ou Boliviano, com muita pampa (vales abertos), monótono e ventoso, e foi apenas quando chegámos perto de Susques que a paisagem começou a revelar a sua beleza com variadas e coloridas formações rochosas.

Centro de Susques.



Susques é a única aldeia neste trajecto de 430 km entre San Pedro e Purmamarca. Uma pacata aldeia com forte influencia andina e lugar de paragem para camionistas internacionais que frequentam esta estrada de alta montanha.


A pampa interminável e ventosa continua por mais 80 km até Salinas grandes – as maiores salinas da Argentina, mas diminutas quando comparadas com as de Uyuni ou Coipasa na Bolívia - começando a subir ao passo de Porterillos, que a 4170 metros de altitude seria provavelmente o último cole acima dos 4000 metros de toda a minha viagem.


O downhill de 2000 metros para Purmamarca foi algo espetacular. A estrada cai vertiginosamente na Quebrada de Humahuaca (desfiladeiro), entrelaçando-se na encosta da montanha de rocha sedimentaria esculpida pelo vento e leito de rios que ao longo dos milénios criaram formações rochosas e um arco Iris de cores de uma beleza tão invulgar que a UNESCO decidiu declarar toda a Quebrada de Humahuaca como património natural da humanidade.


Purmamarca

As cores vívidas das rochas são particularmente bonitas em redor da aldeia turística de Purmamarca onde nos alojamos no parque de campismo da casa de Bebo Vilte a tempo de preparar uma deliciosa Parrillada argentina - carne de vaca grelhada na brasa e regada com vinho Toro cujo preço é pouco superior a um bom sumo natural. Algo me diz que vou adorar este país!

Várias aldeias pitorescas dotam a paisagem da Quebrada de Humahuaca ao longo dos seus 150 km de extensão, entre outras, a aldeia de Tilcara, 30 km a norte de Purmamarca onde passamos uma semana simplesmente a usufruir das temperaturas amenas e a relaxar dos últimos meses de viagem pelo árido e frio Altiplano Andino. Estava na altura de abrir os guias e estudar os mapas com maior rigor. A direcção das nossas próximas pedaladas iria definir os seguintes meses de deambulação ciclo-turística pela America do sul. Seguir directamente para Sul rumo à patagônia pela ruta 40 era a opção menos favorável, uma vez que estávamos sedosos por calor e selva, mas seguir com os planos iniciais de voltar para norte e regressar ao (frio) altiplano antes de descer ao Amazonas Boliviano estava a tornar-se numa opção cada vez menos apetecível. Por outro lado, e depois de análises mais cuidadas, não tínhamos tempo suficiente para ir a La Paz descer a famosa estrada da morte e fazer a viagem de barco pelo rio Mamoré, uma vez que isso implicava deslocarmo-nos vários milhares de quilómetros para Norte. Depois de uma semana de relax em Tilcara chegamos a um consenso: iríamos descer a garganta de Humahuaca até à cidade de Jujuy e uma vez aí, veríamos as opções de viajar em autocarro até Santa cruz na Bolívia, evitando assim o altiplano e seguindo posteriormente para o Pantanal no Brasil. Uma opção que eu não estava 100% de acordo uma vez que isso implicava por a burra num transporte motorizado, mas como era uma viagem de 1000 km directamente para norte, não pus objeções. Dizem que “o destino se escreve por linhas tortas”, mas com tantas voltas e mudanças de itinerário, quando iria chegar a Ushuaia e terminar esta viagem? Em 2010?

Em San Salvador de Jujuy ficamos alojados na “casa de ciclistas” do Benjamin e da Ana, na companhia dos seus 7 filhos e de uma enorme quantidade de cães, alguns dos quais insistiram em partilhar a nossa cama, mesmo contra minha vontade. Na casa da Ana e do Benjamin estavam também alojados 2 outros ciclistas; o Filipe, um simpático e cordial Mexicano de 55 anos que começou a pedalar em Ushuaia, na ilha da Terra do Fogo, há 4 meses atráz e pretende chegar à sua terra natal no México em meados do ano que vem. O Filipe já estava na casa de ciclistas há mais de um mês, impossibilitado de continuar a sua viagem por estar em recuperação de um acidente num parque natural ali por perto onde partiu ambos os punhos. Na casa estava também o Antony, um mochileiro Francês a viajar pela America do Sul e que decidiu adaptar as suas mochilas a uma velha bicicleta comprada em segunda mão na Ciudad Del Este no Paraguai, e com ela desafiar as estradas do altiplano Boliviano (boa sorte Antony!) e que teve a incrível amabilidade de por os seus planos de viagem de lado e cuidar do Filipe durante a sua recuperação, uma vez que este, com ambos os punhos partidos, estava impossibilitado de fazer o que quer que fosse.
Eu e o Antony
Familia na casa de ciclistas em Jujuy
Companheiros de quarto
Bejamin
Filipe e um dos filhos do bejamin


A cuidar de todos nós estavam a Ana e Benjamin, um amável e divertido casal Argentino que decidiram partilhar a sua humilde casa com os ciclo-turistas que ao passarem por Jujuy têm o privilégio de os conhecer. O Benjamin também viajou em bicicleta por toda a America do Sul há cerca de 20 anos atrás, mas com um objectivo muito peculiar, quase carismático: o de contagiar as pessoas com a sua alegria de viver.
Bejamin

Viajava com 100 quilos de carga, na sua maioria equipamento essencial para os espetáculos de mímica, teatro e música que encenava em praças de aldeias, ruas de cidades, escolas ou apenas para amigos. Instrumentos construídos por ele que completavam a coreografia da sua alegria de vida e do seu sorriso contagioso.
Passamos por ali uns dias, aproveitando para viajar a Salta em autocarro, conhecer a bonita cidade e aproveitar a oportunidade para comprar um aro novo para a roda traseira que com 24.670 km de rodagem já estava a ponto de se partir.
Cidade de Salta


Estava na altura de partir de novo e com novos planos de viagem definidos. Finalmente tínhamos conseguido “arrumar a casa”, como a Joana lhe chamou. Ela iria em autocarro para Sucre na Bolivia onde a esperava uma amiga e mais um novo cartão de credito - o segundo que perde na viagem! Posteriormente iria em autocarro para Santa Cruz, onde nos encontraríamos de novo dentro de aproximadamente uma semana. Eu, dando continuidade à minha teimosia de fazer o máximo possível da viagem em bicicleta, iria ter com ela na minha burra, mas como premio tinha pela frente uma das etapas mais aborrecidas de toda a viagem. Uma etapa incrivelmente rápida com 964 km percorridos em apenas 7 dias a uma media de 138 km por dia e cujo o que vi e presenciei não merece mais do que um ou dois parágrafos de descrição!


Na parte Argentina desta eufórica etapa, os 400 km de estrada alcatroada entre Jujuy e a fronteira de Pocitos não têm qualquer interesse cicloturístico. A estrada sem bermas e de trafego intenso atravessa as planícies agrícolas do Norte da província de Salta, e o único digno de registro nesta parte da etapa foram os muitos camiões a passarem por mim a 200 km por hora, os ziliões de canas de açúcar em ambos os lados da estrada, ou a ocasião em que um motociclista embriagado quase que me atropela na minha tenda a meio da noite depois de eu ter decidido montar a tenda no meio de um caminho dentro de um pequeno bosque, o qual supus estar em desuso. O senhor ficou tão furioso com a minha obstrução da “via publica” (como ele chamou ao acesso á sua casa algures no bosque) que decide regressar mais duas vezes durante a noite, num estado de embriaguez tal que à terceira, ouço-o a cair da moto algures na floresta escura.

No lado Boliviano, e para minha completa surpresa, a estrada não só tem umas bermas fantásticas como não tem absolutamente tráfico nenhum devido a um bloqueio de estradas, a forma de protesto da população local que luta em favor á autonomia da região do Chaco e de outras províncias da chamada “media luna” que abrange quase todas as províncias das terras baixas do país. Apesar de ter a estrada quase só para mim durante várias centenas de quilômetros, a paisagem continua aborrecida e sem grande interesse para o ciclismo. Estava determinado a concluir a etapa o mais rapidamente possível e no 7º dia, aproveitando a brisa que soprava de Sul e a estrada plana, pedalo todo o dia e pela noite dentro, chegando a Santa Cruz de La Sierra com um novo recorde no conta-quilómetros: 218 km!

Santa Cruz de la Sierra

Santa Cruz de La Sierra é a maior, mais moderna e mais cosmopolita cidade da Bolívia e que deve a sua bonança ao contrabando de cocaína dos anos 80 e 90 que impulsionou a economia local. Posteriormente a exploração de petróleo e agricultura mecanizada trouxe maior prosperidade para a região. Hoje em dia a moderna cidade de Santa Cruz é o epicentro da luta das recém proclamadas regiões autónomas da nova Bolívia dividida, e Ruben Costa, o perfeito local, o líder e principal oponente às políticas do governo do presidente indígena Evo Morales.

A situação social e económica que se vive actualmente no país é bastante tensa, e a instabilidade política está a levar o país à beira do colapso. A eleição de Evo Morales ao poder, o primeiro presidente indígena da America Latina, trouxe à superfície as feridas de descontentamento deixadas pela continua submissão económica e social dos povos indígenas a uma diminuta minoria elitista (grande parte dela de descendência Europeia) que controla todo o sector produtivo do país, deixando a esmagadora maioria da população, em particular a que vive no altiplano, em níveis de pobreza dos mais baixos de todo o continente. Evo Morales é a voz dessa população indígena, 65% dos cerca de 10 milhões de habitantes do país, e a sua única esperança, no entanto o lobby dos descendentes de colonos que vivem nas terras baixas é demasiado forte e não o deixam governar. A sua política populista e de nacionalização da riqueza nacional está completamente desactualizada num contexto mundial e em particular numa era em que a America Latina tenta com dificuldade afirmar a sua posição mundial. Penso que não tardará a que tudo volte a estar como estava antes, isto é, o poder de regresso aos descendentes de colonos e os indígenas entregues de novo ao seu próprio destino. Entretanto, Paros, ou bloqueios de estradas, é uma ocorrência diária por todo o país, que para além das insubstituíveis perdas de vidas humanas nos conflitos com as autoridades, tráz caos económico com a falta de distribuição de alimentos, combustíveis e livre transporte de passageiros. Uma situação que afecta a todos incluindo ciclo-turistas como eu e a Joana.


Já estou em Santa Cruz quase há uma semana à espera da Joana que está “refém” de um desses bloqueios de estradas na cidade de Sucre, a capital constitucional da Bolívia. Todas as estradas de acesso á cidade foram bloqueadas pelos protestantes que reivindicam a devolução ás províncias produtoras de petróleo, um imposto estatal sob combustíveis. Impossibilitada de viajar por terra esta a por a possibilidade de vir ao meu encontro de avião. De momento resta-nos apenas esperar, eu em Santa Cruz e a Joana em Sucre, até que a situação se resolva.
Na última etapa de ciclismo na Bolívia iremos continuar a nossa ciclo-deambulação pelo continente Americano seguindo um pouco para Nordeste visitando uma serie de aldeias coloniais com antigas missões jesuíticas, parte do património mundial da UNESCO, e depois para Sudeste com direcção ao Brasil. Pelo caminho iremos tentar cruzar o Pantanal Boliviano através do Parque Natural de San Matias para depois entrar no Brasil, ou pelo menos eram esses os nossos planos.

Nuno Brilhante Pedrosa

10.04.2008

"Into the wild" parte IV. Vulcao Uturunco e a estrada mais alta do mundo? (Bolivia)

DIAS 37 e 38
Dias livres em Quetena Chico


Foto de "familia": A Sra Modesta e Sr Marcelino com os seus filhos e a Didiana e Jeronimo, um casal de Paulistas (a viajar num tour), em frente ao hostal Condor em Quetena Chico, com que passamos alguns bons momentos durante os 2 dias de espera antes de dar inicio a ascensao do Uturunco.


DIA 39
De Quetena Chico ao final da pampa na encosta do Uturunco.
15.3km
Altitude máxima 4477m
Altitude de acampamento 4477m


Hoje foi um dia muito difícil. Os problemas começaram logo pela manhã quando fomos visitar a flota (autocarro), estacionada na poeirenta praça principal, não tinha nada para vender. Tinham-nos dito que traria vegetais e fruta desde Uyuni, mas a senhora a cargo das mercearias não tinha viajado desta vez e estava vazia. Num acto de desespero começamos a bater ás portas de particulares a pedir comida. Conseguimos juntar alguns vegetais que agregamos a alguns enlatados que tínhamos comprado no dia anterior. Enchemos as garrafas de plástico, 11 litros, com água do poço da senhora Modesta e ás 11.45 horas partimos.

Praça principal de Quetena Chico

Apesar do Sr. Marcelino nos ter afirmado que não havia água no percurso para além de um acampamento abandonado no inicio da subida, esperávamos encontrar alguma neve ou gelo mais próximo do topo do vulcão que pudéssemos usar para beber e cozinhar, mas o que ainda não sabíamos era que o pouco gelo que havia estava contaminado por enxofre. As indicações do Sr Marcelino, que no dia anterior tinha subido comigo a um cerro por detrás da aldeia para me explicar o melhor caminho a tomar, foram bastante boas. Sem essas indicações não teríamos conseguido decifrar o miríade de caminhos que há á saída da aldeia.

O progresso foi muito lento, a estrada estava numas condições terríveis, mas era pedalavel parte do tempo. Nos dois dias de espera em Quetena Chico não me tinha alimentado adequadamente e sentia-me fraco e débil. Apesar de ter deixado algumas peças de equipamento na aldeia, a água e comida acresciam bastante peso á carga, provavelmente acima dos 40 kg. Estava constantemente a ficar para trás, a Joana seguia a bom ritmo, uma vez que ia consideravelmente mais leve.


A dado momento paramos a discutir sobre do peso das bicicletas e do meu fraco desempenho. Estávamos a ter um péssimo inicio de ascensão e a moral era baixa. Ao final do dia tínhamos percorrido apenas 15 km e com apenas 400m de subida acumulados. Parava frequentemente para recuperar forças. Ainda mal iniciamos a ascensão e começo já a questionar se iríamos conseguir. E mais, valeria à pena? A estrada era simplesmente desastrosa cheia de calhaus e com partes arenosas onde tínhamos que puxar as burras, pois empurrar, por vezes não era o suficiente.

A 10 km de Quetena Chico passamos pelo acampamento abandonado com um pequeno riacho por perto. Apesar do mau sabor da água atestamos as garrafas. O caminho em desuso começa a afastar-se lentamente da pampa e aproximando-se do sopé do vulcão. Montamos acampamento aos 4477 metros. Amanha iremos tentar subir 650m até aos 5150m. Pode parecer um numero irrisório, mas dadas as condições da estrada, a nossa carga e a altitude, será um verdadeiro desafio.

DIA 40
Do final da pampa a algures na encosta do Uturunco.
8.9km
Altitude máxima 5138m
Altitude de acampamento 5138m


Eram 10.30 da manhã quando deixamos o acampamento e continuamos a empurrar as bicicletas montanha acima. Tínhamos acordado determinados a continuar. Ao km 18.9 desde Quetena Chico atingíamos os 4700m e dávamos inicio a uma serie de “switchbacks” ou curvas de cotovelo, com inclinações superiores a 10%. Áquela altitude as burras recusavam ser montadas e o progresso era muito lento. Avançávamos a uma media de 2/3 km por hora, parando cada 30 ou 40 metros para recuperar fôlego.

Já quase há um ano que pedalo sobre a espinha dorsal andina e os largos milhares de quilômetros percorridos em estradas de montanha tinham-me convencido que quanto mais alta for a estrada menor era a inclinação, algo que tinha comprovado nos passes onde havia chegado acima dos 4000 metros como no Equador e no Peru, mas aqui, no Sudoeste do altiplano Boliviano, as estradas parecem ser construídas ao acaso, sem regras e com inclinações superiores a 15% acima dos 4500 metros, são desenhadas em linhas de água e trepam as encostas, parecem feitas como se ninguém as fosse utilizar.

Este tortuoso caminho foi construído há cerca de 20 anos atrás para dar acesso a uma mina de enxofre situada no topo do vulcão, com a queda dos preços deste mineral no mercado mundial a mina fechou e a estrada caiu em desuso. Hoje em dia é apenas percorrida por alguns aventureiros e Andinistas que se predispõem a conquistar o seu topo.



Montamos acampamento aos 5138m com vistas fantásticas do vulcão e vales de circundantes que se perdiam de vista. Tínhamos feito apenas 9 km, todos eles a empurrar. Estávamos exaustos, a ficar com pouca água, sem a mínima idéia a que distancia estaríamos do topo, sem a certeza de que estávamos no caminho certo e tão pouco estávamos seguros das razões porque desejávamos estar ali.

Tinha tomado conhecimento desta estrada, por acaso, há mais de um ano atrás quando pedalava pela America Central e o calor me levou a procurar estradas mais altas e temperaturas mais amenas para pedalar. Uma busca na internet das estradas mais altas de todos os países Centro Americanos, as quais pedalei, excepto na Guatemala e no Panamá, fez-me encontrar o site de uns franceses que em 2005 numa expedição de bicicleta sem carga e com carros de apoio haviam subido ao topo do Uturunco. Foi apenas em La Paz que consegui localizar o vulcão nos mapas.

Mas será esta a verdadeira estrada mais alta do mundo? Durante muitos anos o governo Indiano fez acreditar ao mundo que o passe de Khardung La, a 5602 metros, era o passe mais alto do mundo, mas uma expedição catalã recentemente confirmou que a medida exacta e de 5359 metros. O topo da estrada que sobe ao vulcão Uturunco foi medido em GPS pelo único ciclista (Italiano), pelo menos que eu tenha conhecimento, a subir em total autonomia. Ele registrou o “cole de sac”, ou estrada sem continuação, a 5836 metros de altitude o que é superior ao Khardum La por uns vantajosos 477 metros.

Julgo que o Uturunco não se qualifica como a maior estrada do mundo por não ser asfaltada e não ter continuação. Sejam quais forem os requisitos para o titulo honorifico o certo é que este percurso sobe a encosta do vulcão com umas inclinações tão fortes que é simplesmente impossível pedalar, pelo menos com as bicicletas carregadas. Os números atestam esta realidade: a ascensão dos 4350 metros aos 5836 é feita num espaço de apenas 15 km.

DIA 41
De algures na encosta do Uturunco ao seu cone.
6.3km
Altitude máxima 5702m
Altitude de acampamento 5688m


A Joana desperta-me com a noticia de que tinha ouvido o barulho de motores de carros. Há dois dias que não víamos vivalma e seria a oportunidade de perguntar se estávamos no caminho certo e talvez obter alguma água. Quando saímos da tenda já tinham passado pelo acampamento. Continuamos o nosso ciclo-masoquismo montanha acima. A meio do dia o jeeps passam por nos já no seu regresso a Quetena Chico, em dois deles vinha uma comitiva de Andinistas internacionais: dois Ingleses, um Americano e 3 gerações de uma família Mexicana, vinham acompanhados por um guia de La Paz e pretendiam subir a vários picos acima dos 6000m sendo o cume do Sajama o seu próximo destino.


Incrédulos com a nossa missão de subir ao topo do Uturunco em autonomia e com as bicicletas carregadas presentearam-nos com frutos secos, barras energéticas, água e fruta. Mas mais incrédulos estávamos nós com o avô do Oscar que com 70 anos tinha acabado de subir ate aos 6000. Informaram-nos de que faltavam cerca de 5 km para o final do caminho mas que as inclinações continuariam inclementes. Desacreditando a visão de alguém que viaja em jeep por não ter os “olhos” de um ciclista, pensei que não poderia ser pior do que tínhamos feito até ali e seguimos viagem determinados a concluir a nossa etapa. Pensámos que conseguiríamos chegar ao topo nesse dia mas o caminho era agora de calhau rolado e as inclinações continuavam cruéis!


A dado momento o caminho parecia desafiar as leis da gravidade e subiu durante uns 100 metros com uma inclinação que seria com certeza superior a 25% (as rodas da bicicleta rodavam tão lentamente que não conseguia ter uma leitura correcta das inclinações no meu altímetro), e tendo em conta que já estávamos acima dos 5000 m poder-se-ia dizer que verdadeiramente o que fazíamos não era cicloturismo mas ciclo-masoquismo! Empurramos com muita dificuldade uma bicicleta de cada vez, estávamos agora no cone do vulcão e o chão estava revestido de terra de um branco amarelado pelo enxofre, passamos por varias fumarolas e seguimos viagem.


Ao final da tarde uma curva revela o que parecia um ultimo troço de estrada, provavelmente com pouco mais de um quilometro de extensão. Mas estávamos exaustos e não tardaria que o sol desaparece-se no horizonte. Tão perto, mas tão longe. O único lugar onde era possível montar a tenda sem ter que dormir com 30 graus de inclinação era a própria estrada, mas com 300 metros de montanha escarpada e de rocha solta por cima de nós, não nos atrevemos a acampar ali e retrocedemos cerca de um quilometro acampando perto das fumarolas de enxofre onde a encosta nos parecia menos susceptível a derrubes nocturnos.


Dentro do meu saco cama tento visualizar a nossa localização numa perspectiva aérea, um ponto minúsculo naquela vasta paisagem selvagem com centenas de quilômetros de deserto em nosso redor, o cheiro a enxofre, o frio e a sensação indescritível de estar a acampar no cone de um vulcão adormecido a 5700m de altitude. Nessa noite não dormi bem.

DIA 42
Do cone do Uturunco a Quetena Chico.
32.5km
Altitude máxima 5783m (ponto mais alto da viagem!!!)
Altitude de acampamento 4150m


Com o sol a nascer por detrás da montanha e com o vento forte a soprar logo pela manhã quando sai para desmontar a tenda não tardou a que os meus dedos congelassem provocando dores insuportáveis como se estivesse a ser picado por milhares de agulhas. As luvas térmicas de fraca qualidade compradas no Equador meses antes eram praticamente inúteis e de facto as meias da Joana metidas nas mãos provaram ser mais eficazes contra o frio do que as próprias luvas.

2 km depois chegamos ao final do caminho. Estávamos, segundo o meu altímetro, a 5783 metros de altitude. Uma sensação de bem estar apoderou-se de mim. Por breves momentos esqueci-me de que acabara de passar 3 longos dias a empurrar a bicicleta num sacrifício que desafiou a minha própria sanidade mental. Contemplei a paisagem marciana em meu redor e sentia-me exultante por ter aqui chegado, no entanto a falta de oxigênio e a minha fraqueza física imploravam pela descida. A Joana, contudo, estava determinada a subir a pé até ao topo do vulcão. Um pouco resignado, subimos juntos, a passo lento, os restantes 200 metros até ao topo. O meu altímetro registrava 6006 metros de altitude (leituras de GPS indicam 6020) e como tínhamos prometido ao Hervé (cicloturista suíço que encontramos no salar de Uyuni), ali saboreamos o chocolate suíço que nos tinha oferecido.




As vistas fantásticas pareciam ser tiradas de um filme de ficção cientifica, não foi por acaso que a Nasa, nos seus experimentos na exploração do Planeta Marte, procuraram um local no planeta terra para efectuar os seus ensaios que tivesse as condições climáticas e paisagísticas mais semelhantes e escolheram o vulcão Lincancabur, situado a sudoeste não muito distante de onde nos encontrávamos. Com a gravidade a nosso favor a descida até Quetena Chico levou-nos apenas uma tarde a fazer, chegamos á aldeia ao anoitecer. A lua cheia presenteia-nos com uma ultima imagem do que foi com toda a certeza o maior desafio físico e mental de toda a minha vida.


DIA 43
Quetena Chico
Dia de descanso


Pës de molho no tacho!

DIA 44
DE Quetena Chico a meio da subida cruel.
24.1km
Altitude máxima 4475m
Altitude de acampamento 4475m


A subida ao Uturunco foi suficientemente dura para que começássemos a desejar sair do altiplano o quanto antes. Viajávamos por esta paisagem desolada de estradas tortuosas já há 44 dias (sem contar os 15 dias na parte norte do Altiplano onde as estradas são de facto planas mas com paisagens menos interessantes). Com o aproximar do aniversario da Joana que melhor para presentear-la senão algumas comodidades e confortos que encontraríamos em São Pedro de Atacama já no outro lado da fronteira?
Mudamos de planos mais uma vez e decidimos não ir á Laguna Colorada e Geiseres ‘Sol de la manana’, seguindo directamente para a Laguna Verde na fronteira como o Chile passando pelo do salar de Chalviri e Deserto de Dali.

Tínhamos percorrido 10 km quando chegamos a Quetena Grande, uma aldeia ainda menor que Quentena Chico. Nos quilometros seguintes pedalamos por uma serie de pequenos casarios de pedra, alguns abandonados, outros com alguns vestígios de presença humana.




É simplesmente incrível a tenacidade humana para viver em lugares tão hostis. Aqui, acima dos 4000m, a Pacha Mama (Terra Mãe), é infértil e os poucos animais que se adaptam a estas altitudes são as lamas e as alpacas. De que vive esta gente? O que comem, e porque são tão obstinados em viver aqui? Fiz essas e outras questões a mim próprio inúmeras vezes enquanto enfrentava as calamitosas estradas altiplanicas. Nem eu sabia bem o que andava por ali a fazer montando numa bicicleta carregadissima. Será que havia algo em comum entre mim e estas gentes? Será que eram as dimensões incomensuráveis das montanhas, a vastidão, e a beleza irrefutáveis da paisagem crua que nos atraiam a todos?

Ao fundo do vale rochoso por onde pedalávamos uma enorme montanha interpunha-se no nosso caminho, um riacho semi-congelado desviava-se para a esquerda e ziguezagueava seguindo o seu caminho para sudoeste. A Joana avista uma estrada a subir a encosta da montanha e diz-me que temos mais um “empeno” pela frente. Analisando a minha bússola e mapas não fazia sentido subir a montanha quando o vale aberto seguia para sudoeste. Para minha completa perplexidade, poucos quilometros depois estávamos de novo a empurrar as burras por mais uma subida cruel de inclinações simplesmente ridículas. A estrada subia pelas linhas de água como se fosse uma corda gigante lançada ao acaso. Lagrimas de desespero começam a cair pela cara da Joana e, no seu rosto, podia ver que questionava como eu o sentido daquela etapa. Damos o dia como concluído e acampamos ao lado do caminho. Amanhã enfrentaremos o resto da subida.

DIA 45
Da subida cruel a (depois de) Laguna Kolpa.
18.1km
Altitude máxima 4726m
Altitude de acampamento 4611m


Depois de mais um pequeno almoço de baixo teor energético, bolachas de água e sal barradas com doce, maisena feita com leite em pó e café, à custa desta dieta havia perdido vários quilos de peso nas ultimas semanas, seguimos viagem empurrando as bicicletas montanha acima. As inclinações superiores a 15% obrigavam-nos aos dois, a empurrar uma bicicleta de cada vez.

Atingimos o passe de 4726 metros de altitude e entramos num outro vale mais elevado e desolado que o anterior. O vento forte incessante golpeava as bicicletas lateralmente o que reduzia a nossa velocidade a uns meros 8 ou 9 quilometros por hora. Passamos por varias lagunas com cores brancas do sol que reflecte nas águas rasas e de grande teor salino. Á tarde o vento intensifica-se. Procuramos um lugar para acampar protegidos do vento, mas a pampa aberta não nos oferece escolha. Acampamos a 1.5 quilometros depois da laguna de Kolpa.





DIA 46
Da Laguna Kolpa a Laguna Verde.
1.5km em bicicleta mais 60 km em jipe.
Altitude máxima 4617m
Altitude de acampamento 4341m


Estávamos acampados a 4600 metros e aquela altitude o vento não deixava o sol aquecer a terra. Carrego os alforjes na burra e quando me viro para traz acontece o que eu mais temia, tinha deixado o feixo aberto e sem o peso dos alforjes a tenda cedeu. O vento inclemente partiu ambas as varas e fez um rasgo lateral de cerca de 80 cm. A força dos elementos tinha reclamado a sua vitoria. Estávamos numa das zonas mais inóspitas da America do Sul onde a supremacia da Pacha Mama é inquestionável.


Derrotados e impossibilitados de continuar sem tenda, retrocedemos até a um acampamento de trabalhadores que havia junto á Laguna Kolpa e ai convencemos o responsável pela exploração de boro a transportar-nos em jeep até a Laguna Verde. As negociações com o pouco voluntarioso capataz levaram toda a manhã e só partimos lá pelo meio dia, depois de um suntuoso acordo monetário. Foram cerca de 60 km a ver a paisagem passar pelo vidro da janela como se de televisão se tratasse. Ao Chegar a Laguna Verde, que recebe o seu nome pelas tonalidades únicas das suas águas, alojamo-nos num albergue de montanha perto da lagoa e a uns escassos 7 quilometros da fronteira.

DIA 47
Da Laguna Verde a San Pedro de Atacama (Chile)
61.6km
Altitude máxima 4612m
Altitude de acampamento 2527m



Depois das formalidades aduaneiras Bolivianas em Hito Cajon (as Chilenas são em San Pedro), num edifício de rés de chão num manifesto estado de decadência e sob a sentinela do Vulcão Lincancabur, entramos em território Chileno. A paisagem mantém a sua espetacular postura, e a única diferença que marcava a entrada num outro pais era a Estrada Alcatroada! Poucos quilometros depois chegamos não só ao alcatrão, mas também ao inicio de um fantástico downhill de cerca de 2000m que nos levou desde o frio altiplano ao Oasis de temperaturas moderadas de São Pedro de Atacama. Depois de um mês e meio a pedalar nas estradas mais desastrosas do continente, o alcatrão era como se fora um tapete voador. Ah, como era bom senti-lo de novo!



Estávamos ansiosos por um bom duche de água quente, cama confortável, roupa lavada e comida de ingredientes frescos. São Pedro de Atacama ofereceu-nos tudo isso e algo mais, mas a preços exageradamente elevados, pelo menos para o nosso modesto orçamento. Depois de tantas semanas a viajar pelo desolado altiplano, São Pedro de Atacama pareceu-nos um lugar moderno e sofisticado. Mas na verdade é apenas um pequeno Oasis no vasto deserto de Atacama que engloba quase todo o norte do Chile. Uma pitoresca povoação de casas de rés de chão construídas em adobe com uma praça cheia de sombra e vistas fantásticas para uma serie de vulcões que pincelam a paisagem a Este da aldeia. É também lugar de passagem para muitos viajantes e mochileiros que deambulam pelo Hemisfério Sul Americano, a sua popularidade tem crescido irrefutavelmente nos últimos anos, e uma aldeia tão turística que não parece haver nenhuma outra actividade genuína para alem das que estão relaccionadas com a exploração do turismo.



Hoje a Joana faz 30 anos, iremos celebrar esta data, e também o final da etapa mais dura da viagem, em requinte. Fomos a um restaurante onde comemos a mais deliciosa mesa de queijos e o mais suculento jantar dos últimos meses regados por duas garrafas do melhor vinho chileno, afinal não e todos os dias que se celebram 30 anos, que se sobe acima dos 6000 metros e se viaja e sobrevive, em boa companhia, nas paisagens mais hostis do planeta. O altiplano Boliviano foi sem duvida a etapa mais dura de todas as minhas aventuras cicloturisticas, e se ouso imaginar como teria sido a experiência caso o tivesse feito sozinho, e porque sei que sem a Joana, o seu encorajamento nos momentos mais cruciais, a sua determinação e a combinação das nossas energias para atingirmos metas, e muito provável que concluiria esta etapa com um balanço menos positivo do que o obtido na sua companhia!

Nuno Brilhante Pedrosa