8.05.2007

Um ano pela estrada Pan-Americana (Nicaràgua)

A Pan-Americana atravessa a fronteira zigzagueando por plantações de café e bananais, descendo suavemente as montanhas no seu percurso para Ocotal e posteriormente para Managua, nas planícies tórridas da Nicarágua.
A estrada em excelentes Condições foi mais um dos muitos projectos de cooperação estrangeira depois do furacão Mitch ter devastado a zona em 1998 . O furacão Mitch foi o mais mortífero e destrutivo dos últimos 200 anos por toda a América central, e a zona em redor a Ocotal das mais devastadas na Nicarágua.

Quase 10 anos depois, cicatrizes dessa destruição ainda eram visíveis nas encostas das montanhas cujos desabamentos criados pelo excesso de chuvas e rios furiosos tinham alterado a paisagem.
Ao longo do percurso a bandeira da Nicarágua partilhava o espaço - em placas enfurrejadas pelos elementos - com bandeiras da comunidade europeia, canada, china, Japão, Taiwan entre outras. Sinais dos inúmeros projectos de cooperação humanitária criados nos anos seguintes à passagem do furacão que fez historia e que arrasou a já empobrecida economia do país.

Nicarágua è o segundo país mais pobre do hemisfério ocidental ,depois do Haiti. Num país onde a pobreza è quase palpável, os seus habitantes vêem-se obrigados a recorrer às formas mais criativas para por comida na mesa ao final do dia.
Na velha estrada que liga Sebaco a Leon os buracos proliferam pela estrada, como uma longa fatia de queijo suíço de dezenas de kms de extensão.
As crianças locais encontraram uma forma de arrecadar alguns còrdobas com o pouco trafico que por ali passa. Com uma pá enchem os buracos com terra e ficam plantados com a pá na mão à beira da estrada sobre um sol abrasador, à espera da generosidade de algum condutor mais aliviado pelo trauma dos solavancos.
Ao final da tarde as chuvadas tropicais lavam a terra batida pondo de novo o buraco a descoberto. No dia seguinte a operação repetesse.

A nossa chegada a Leon caracterizou-se com uma subida drástica das temperaturas. Depois de varias semanas a pedalar sobre as montanhas da Guatemala, El Salvador e Honduras, onde as temperaturas "menos quentes" proporcionaram alguns excelentes dias de ciclismo, tínhamos chegado às planícies tórridas da Nicarágua.
Com pelo menos mais 10 graus do que nas montanhas em redor a Jinoteca e Matagalpa (onde passamos vários dias antes de descer às planícies), não è de estranhar que o passatempo favorito dos leoneses seja baloiçar nas cadeiras de baloiço dentro das suas casas ou nos pátios frescos dos seus jardins.

Leon è considerara o centro intelectual e liberal da Nicarágua. Provas dessas tendências podem ser observadas nos diversos murais esquerdistas que preenchem algumas paredes e murros no centro da cidade. Leon tem também varias universidades que dão à cidade um espírito jovem e boémio.

Alojamo-nos num dos locais mais baratos da cidade, a "casa vieja", por apenas 60 còrdobas por noite (cerca de 2 euros). Era uma hospedagem familiar onde parecia que estavam também alojados metade dos jovens artesões que vendem pulseiras, colares e outro artesanato estilo "hippie", na praça principal da cidade.
Entre eles o Pacheco de El salvador e o Carlos e Jonas (2 Nicas), um de Managua e o outro de Rivas.
Quando não estavam ocupados a fazer pulseiras nas cadeiras baloiço ou a vender-las nas praças da cidade, os nossos novos amigos mostraram-nos um pouco a vida nocturna da cidade durante os 5 dias que por ali passamos.

Para alem das suas tendências radicais e intelectuais, leon significava algo mais para mim: o primeiro aniversario pela estrada Pan-Americana.
Se não fosse pelo conta-quilómetros instalado na bicicleta, há muito que teria perdido o conto aos Kms feitos com a minha fiel companheira de viagem.

O árctico, as "rocky mountains, o deserto mexicano da "baja" ou até mesmo as ilhas paradisíacas de Belize, pareciam fazer parte de um passado distante. Uma outra viagem.
Foi um ano muito intenso.

Pedalar tornou-se numa rotina quase diária. Mas essa rotina não tem um "dia-a-dia", senão um dia e depois outro...Cada dia apresenta desafios novos e a única rotina è, pedalar! O movimento das pernas que me impulsiona cada vez mais para sul sobre a curvatura do planeta azul.
20.000 km depois, viajar parece-me bem mais fácil, e nem os Andes - onde se encontram dos maiores desafios de ciclismo do planeta - me parecem preocupar.
È mais a sul, no final da cordilheira, na ilha da "Tierra del Fuego", que residem todas as minhas preocupações. Ushuaia não è só a cidade mais austral do mundo, è também o final das estradas no continente americano.
Como será o regresso à pátria lusitana?
Irei alguma vez reintegrar-me numa sociedade que sempre me pareceu ter os seus defeitos?
"podes virar a bicicleta para norte e continuar a pedalar", disse-me o Jeff uma vez.

Mas Ushuaia não è a meta final desta aventura. A meta è aquela que impões a ti mesmo. Afinal de contas o objectivo desta aventura não è chegar a algum lado, mas ir a algum lado...
Como o poeta português José Régio escreveu:

"prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redemoinhar aos ventos,
como farrapos,arrastar os pés sangrentos,
a ir por ai..
a minha vida e um vendaval que se soltou,
e uma onda que se levantou,
e um átomo a mais que se animou...
não sei por onde vou,
não sei para onde vou
sei que não vou por ai! "


Fizemos-se à estrada de novo.
Com o regresso às terras baixas tivemos que "readaptar" os nossos horários às temperaturas mais elevadas e começar a pedalar mais cedo - sempre um sacrifício para mim!
Pouco depois do nascer do sol estávamos na estrada com direcção a Granada.

Granada è a cidade colonial espanhola mais velha do país. Situada junto ao lago Nicarágua com o vulcão Mombacho a impor-se no horizonte a sudeste. A área em redor da catedral e parque Colon è particularmente bonita e retém muito desse chame e carácter colonial. Um pedaço de Castilha na América Central, onde não faltam nem as carroças com cavalos. Mas as fachadas dos edifícios coloniais pintadas de fresco, passeios calcetados e jeeps modernos dos ricos de Managua, desvanecem a alma da cidade. Falta-lhe o carácter radical e intelectual de Ruben Dario e dos seus amigos característico em Leon.

Vamos ficar por aqui uns dias aguardando a chegada da Teresa que vem de Lisboa nas suas 4 semanas de ciclo-turismo pela América central.
De facto ela já chegou a San José mas a sua bicicleta ainda não.
Será que as companhias aéreas alguma vez vão reconhecer as "bagagens" dos ciclistas como iguais à dos outros passageiros?

Vai ser bom poder voltar a falar - mesmo que por pouco tempo - na língua de Camões.

Poderão acompanhar a viagem durante as proximas semanas tambem atravès do site dos amigos do az-trails

Nuno Brilhante Pedrosa
Em Granada, Nicarágua.